segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Forjador de vidas

Tentei, incongruentemente, juntar os pedaços da minha vida e fazer deles um mundo igual a todos os outros mundos mas o infortúnio de ser desigual aos demais não me permitiu tal veleidade, obrigando a que o puzzle dos meus dias e, a cada dia, não se completasse como assim o destino o predestina. O decorrer dos dias fez correr os anos e o número de peças soltas foi, atormentadamente, aumentando e, o que de início, não passava de um mero buraco, ou dois, soltos, na pequena grande folha das vinte e quatro horas, com o vazar dos tempos, cada vez mais as peças faltavam, ou sobravam, ou simplesmente estavam desajustadas ao puzzle e os espaços em branco engrandeciam, rasgando os meus dias como grandes clareiras num bosque, abrindo vazios, inexpugnáveis e insondáveis, em mim, desanexando-me e desindexando-me das páginas (constituídas por doze horas) e das folhas e por fim, lavrados que foram os anos, do próprio livro fui, lentamente, expurgado, até apenas uma reminiscência de mim perdurar, teimosamente, sob a forma de uma áurea diáfana. Hoje, recordando de longe, do local onde me refugio em segurança, reconheço que as folhas eram formas de estar e as peças soltas os elos que deveriam encaixar-se numa realidade diferente, um painel de outro livro, o livro da vida que deveria ser mas, não era, a minha, eram as peças desajustadas e as que sobravam (por pertencerem ao mesmo tempo a duas realidades, a duas vidas separadas, eram as peças coincidentes) que completariam os brancos livres das folhas incompletas que formariam um outro livro de uma outra estante nesta biblioteca, neste arquivo semi-morto, da vida. Esta seria a recôndita prateleira da estante onde guardaria o livro que deveria ter sido a minha vida, vida inscrita, a ferro e fogo, nestas peças, irrecuperáveis, que foram atiradas nas profundezas do tempo, recalcadas, humilhadas, todavia nunca esquecidas. Esta prateleira seria, dessas peças o cemitério, e era lá que deveriam, libertas, serenas repousar e descansar eternamente. A vida que (sobre)vivo misturou, na sua infinita ignorância, estas duas nefastas realidades, criou um mundo desequilibrado, pleno de lacunas, brechas e clareiras, inquinado, que viaja permanentemente de um eu que não era EU, para um NÃO EU que era no final eu e, neste périplo sem fim à vista, a insatisfação vai galopando desenfreada dentro de um ser híbrido, um eu-nim-EU, perdido, inexoravelmente, entre o ser e não SER e, irremediavelmente, atirado no mundo do estar sem que na realidade lá permaneça; divaga no mal-ESTAR indeterminadamente. Esta duplicidade de SER por não ser conduz a um percurso sinuoso onde, a rebelião, sufocada pelo sentido de responsabilidade apegado ao não mundo que a própria vítima cria ou deixa criar, assume-se, com a travessia dos tempos, como um coma induzido. Esta artificialidade, no entanto e contrariamente ao coma induzido, vegeta, inconsequentemente, entre explosões de ira incontida e uma paz em banho-maria e, assim, vai-se afundando numa depressão reprimida, estudada, todavia nem sempre domada e contida. Vejo nestas palavras um homem quebrado pelo silêncio, pela violência das palavras surdas sopradas ao vento, jamais expressas, impostas pelas memórias de um EU, irremediavelmente, perdido nas peças que cada folha, impreenchível, largou a estagnar, a apodrecer nas poças e nos charcos existentes nas clareiras dos bosques, que resultaram das lágrimas impostas que os alagaram. Deixando, inacabado, na prateleira da estante mesmo ali ao lado, um livro, a história do meu EU, a história de alguém que não este boneco, de vida, animado. Porque me entrego assim?... Será uma rendição?... Ou será antes uma consequência directa deste circo, desta arena de areia sangrenta, onde me vejo como o chacinado e nunca como o gladiador vencedor?... Será que estou alquebrando e deixei que fosse traído e ultrapassado pelas subtilezas da vida?... Esta mesma vida pela qual passei e passo ao de leve, deixando mesmo parte dela por viver, parado num marasmo basbaque de quem nunca viu aquilo que já nada tem para ver. Contorno partes, noutras porém passo as folhas relegando as peças mais inconvenientes, tentando esquecer as que supostamente não interessam, ou as que tomo por irrelevantes por conveniência, ou ainda largando-as no branco e preto da indiferença por descabidas. Assim, faço e desfaço a meu bel-prazer, as lacunas, as clareiras, as partes brancas e, vou fingindo a vida que vivo, vivendo uma vida que não é, necessariamente, a minha, abandonando a vida que deveria viver, vivendo na penumbra duma vida que não é minha. Quem sou eu?... Um forjador de vidas indevidas?... Ou a improcedência do bem e a inconsequência do mal?... Quem sou eu afinal?... tÓ mAnÉ Editions

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