segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

No Zé dos Matos

No meio, ou no seu mais ou menos, da segunda intervenção do segundo painel do Colóquio “Metamorfoses do Campo e da Cidade”, por volta das treze horas e trinta e tal minutos e, após uma considerável diarreia literária, em módulo de leitura de autor, inacabada, que versava sobre arrogante e vã tentativa de estreitar o campo à cidade, através de alegorias e extractos de poemas e textos, de Virgílio, de Almeida Garrett – Folhas Caídas – ou mesmo Eça de Queirós – A Cidade e as Serras, desabafo um pouco mais alto que o que conviria à ocasião ou ao evento: Socorro! E, acto imediato, levanto-me e saio com cara de desagrado. No caminho entre o auditório e o automóvel, faço uma pequena passagem e paragem nas instalações sanitárias. Mijo. Inspecciono o prepúcio que, após os abusos e maus-tratos da véspera, estava-me a provocar um ardor incómodo. Nada detectei de anormal, nem sequer um vermelhão ou um prurido que fosse. Botei a gaita à cueca e corri o zip das calças, lavei as mãos e propus-me ao caminho. Sentado no carrinha, ainda estacionado, com o estômago a roncar por um reforço ao pequeno-almoço, apesar das bolachitas e dos bolos do coffee break, e contemplando a luminosidade deslumbrante do dia que me entrava como um flash luzente na alma, bem como a temperatura amena que se fazia sentir inobstante a época do ano; início de Novembro, uma ideia desatou a bailar na minha cabeça: Estou no parque de estacionamento da Universidade Campus das Gambelas, não vejo o mar há já algum tempo, estou só e sem compromissos, e o tempo, por si só, até convida, porque não hei-de dar um pulinho ao Restaurante Zé dos Matos em pleno Parque Natural da Ria Formosa, na Ilha de Faro?... E não havendo um porque, o rumo, tal como o destino, estava traçado. A viagem é curta, como curta é distância entre os pontos da partida e da chegada, agradável, onde se beneficia de uma paisagem maravilhosa e de uma fragrância inesquecível da Ria Formosa em plena baixa-mar, contrapondo com a estopada do colóquio entre o bulício da cidade e o bucólico dos campos. Foi com uma enorme sensação de bem-estar e uma satisfação inefável que vi deslizar, pelo exterior dos vidros da 308 SW, os contornos da ponte que liga a zona do sapal à estreita faixa de terra que a separa do mar. Deslumbra pela fragrância peculiar da brisa a maresia, inquinada pelo almíscar do matope das zonas alagáveis, agora descobertas, que enche, preenche e turva os sentidos enquanto circula livremente atravessando os vidros abertos da carrinha. Estacionar, foi mesmo à porta do restaurante, apesar do sexto dia, da sexta-feira, do mês de Dezembro, do ano de 2013; É a crise, dizem uns e a oportunidade dizem outros, mas de que importa isso afinal, para eternizar, o meu momento de felicidade?... E, eis-me à porta do conhecido Zé dos Matos e, isso sim é que é assaz importante. Uns passos mais e descubro-me a escolher, sob orientação, uma mesa no avançado coberto que, na realidade, se encontra posicionado nas traseiras do estabelecimento e, que permite uma ampla visualização, um privilégio único, da Ria de Faro e da ponte de acesso à ilha, que de facto não é uma ilha mas sim um istmo. Nesse momento, assalta-me a cabeça a seguinte ideia: Deus é grande, é bom, é pai, é negro e é fêmea. Obedecendo, sentei-me onde me foi indicado - na mesa já por mim, mentalmente, pré-definida - ou seja, em qualquer uma das mesas livres que, por sinal ou mau sinal, eram o universo de quase todas, triste sinal dos tempos este, pois em tempos idos sem marcação havia que esperar e desesperar ou levar na cara com um redondo estamos cheios, atirado em surdina, pelo empregado que, em vão, tentava empregar ou envergar o melhor de todos os seus sorrisos. A maré, entretanto, já enche. Assim ditam, para quem sabe um pouco de marinhagem, as proas dos barcos que se viraram a nascente, para a foz em estuário. Abro o cardápio, rebolo os olhos sobre ele, donde, sobressaem, quatro iguarias, que de imediato, despertam a minha gula, provocando-me um rosnar surdo no estômago, avisando-me do adiantado da hora. Ovas fritas, “eirózes” (assim estava escrito, onde é que já se viu um menu sem erro, até parece mal) fritas, arroz de lingueirão e raia de alhada, e o meu estômago famélico rebolava. Pouso a lista na mesa. Acorre de imediato o empregado. Inteiro-me se poderia pedir uma mista de ovas e eirós ou irós ou ainda enguias, todavia nunca “eirózes”, acompanhada de meia dose de arroz de lingueirão ou langueirão. Pesaroso, o empregado, responde que não. Aí opto, entre um piado, deambulante, de uma gaivota que passa pairando no vento e um olhar de relance à ponte, pela raia de alhada, afinal estamos no tempo dela, da raia, não menstruada; na gíria, dizem que, a raia está menstruada quando a raia adquire uma tonalidade avermelhada, durante o período de eclosão larvar que ocorre entre Fevereiro e Agosto e, que durante o mesmo não se devem comer. Para acompanhar peço três quartos de um branco fresquinho – Vinha das Servas 2012 da Herdade das Servas; um alentejano encorpado e frutado, vai bem com o prato escolhido, faz-lhe a cara. Aguardo. E, enquanto isso, resolvo começar a derramar imbecilidades sobre o meu bloco de notas; tinta que agarrada a ela traz mais tinta, fazendo do compasso de espera um acto de entretenimento pseudo-intelectual. Inicio a escrita. Observo quem me rodeia. Todavia não vou por aí. Eis que esvoaça um fiapo de ideia na minha mente: É contumaz, estou sozinho, que mais hei-de fazer que não roçar pelo papel a esfera da esferográfica, tombando nele os meus pensamentos soltos, esvoaçantes tal como balões de hélio livres de peias, e observar quem e o que me rodeia, entre um copo de vinho, um sorriso solitário, talvez até patético. Eis que o tacho em alumínio faz a sua entrada triunfal na sala e aterra pleno de classe sobre a mesa, libertando um odor acidulado, todavia maravilhoso. É o acepipe que chega para libertar do sofrimento o meu estômago já rancoroso que entre um urro e um ronco, exige o que lhe é de direito. E, assim, dei o início a um intervalo para o abuso… Generosa é a palavra que define a dose e generoso foi também o abuso; foi enfardar à fartazana como o bom povo diz. Cometido que foi, comido e bebido, assim o está. Só peço a Deus que não me caia em mau saco e não me meta em alhada alguma, pois a cozinheira carregou no vinagre da raia, no que concerne ao meu estômago e ao meu gosto singular. Quanto ao resto, impecável, o café já fumega, e para meu conforto, bom de tragar, LAVAZA grita a chávena, porque hei-de duvidar? Quinze e dez brilham nos ponteiros do meu Citizen Eco-Drive, peço a conta; a “marafada” como se fala no meu Algarve. Pago. Não reclamo como é meu uso. Mijo, lavo as mãos, e saio. O regresso nem sempre tem mais encanto tal como a despedida e, foi o caso, pois não me apetecia regressar nem tão pouco despedir-me. Queria mesmo era ir sonhar, enquanto marcava, aleatoriamente, as minhas pegadas na areia molhada da beira-mar. Incontornável. Tive que abrir mão dos sonhos e voltar a pôr os pés no chão. A maré, na força da enchente, impou, ganhou espaço, espraiou-se pelo sapal, o cheiro a maresia almiscarada, apesar do levantar da brisa em vento, quase se dissipou, até o caminho de regresso parece que aumentou. O colóquio espera-me para um terceiro e quarto painel, intervalados por um coffee break. Chego atrasado mas daí não advém mal. Agora, entediado, no anfiteatro sentado, toda a magia se esfumou. Abla una española, num “españolez”, sobre um projecto na bacia hidrográfica da Ria de Alvor, todavia longínqua voga a minha alma, voga solta e sonhadora… Rezo! Rezo para que o sono não me dê e, se me der que não durma e, se dormir que ao menos não ressone e, se ressonar que sejam todos surdos ou que ninguém esteja atento ao acto… tÓ mAnÉ Editions

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