segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Crónicas FDS da Laura – Registo X


Cedinho, bem cedinho eu acordei hoje e, como é meu apanágio, bem disposta e gritando pela minha mãe: Mãeeeee… e, ela logo acode gritando por sua vez: O que é filha queria…, tudo se passa como um jogo em vida real. Eu grito por ela e ela responde-me. O que de início foi coisa séria, pois eu deitava-me acompanhada da minha mãe e acordava sozinha na minha cama, o que me gerava um certo (in)cumprimento de onda na minha cabeça, passou hoje em dia a um jogo em forma de bom dia.
Mãeeeee… anda cá, e lá vou entrando no quarto dos meus pais, e perguntando: Onde está a mãe pai... de onde o meu pai, sempre o meu pai que é mandrião e não se quer levantar cedo, me responde: A mãe está a chegar filha querida. E, assim, desta forma elegante, tipo elefante em loja de porcelanas, lhe acabo com o sossego. Ao cabo e ao resto hoje é sábado “e porque hoje é sábado” (Vinicius de Moraes, dixit) não é dia de ficar escarrapachado na cama a fazer preguiça e, para além disso, adoro quando o meu paizinho se levanta com aquele seu humor fantástico de: Cão abandonado, vadio, escorraçado, agredido, tiritando de frio, enregelado, escanzelado, famélico, e encharcado até aos ossos, fica tão giro nessa compostura e, para além disso, veste-lhe bem a pele!...
Hoje resolvi, isto é, apeteceu-me, ir ver os meus bonecos para a televisão da sala, enquanto a minha mãezinha foi pendurar a roupa, no varal, ao sol. Talvez assim não incomode mais o meu paizinho, talvez assim ele durma mais um “cochezito”, advindo daí a virtude de ficar um pouco melhor humorado. Na verdade, também me interessava, pois tinha uma surpresa para ele e não convinha “nadica” de nada que o seu humor piorasse.    
Sabem qual era a surpresa, sabem?... Claro que não, vocês não são adivinhos! Eu conto: Queria ir à “vila” com o meu pai. Queria ir beber um cafezinho de água, ir ao mercado e à loja da fruta e outras coisas mais da Dona Ana a “Gordicha”. E, acontece, que tal como vocês, o meu pai também não é adivinho, portanto estava em plena ignorância desta minha pretensão e planeava, ouvi ele dizer à mamã, ir sozinho às compras a Loulé. Era o que mais faltava ir sozinho para a “vila” ver as gajas.   
Observei-o, à distância conveniente, com muito esmero e atenção, enquanto se despachava, não fosse ele escapar-se à sorrelfa, nalgum momento de laxismo ocular. E, quando ele estava prontinho para dar largas à imaginação, gritei: Papá, papá,… também quero ir, ao que ele respondeu: Está bem filha o pai espera por ti. Pede à mamã para te preparar e nada de brincadeiras.
E, assim, foi ou melhor não foi bem assim mas talvez um pouco mais ou menos, na medida em que a mamã lhe deu uma de “ciumeira” e em menos de um farelo também se despachou e zus, fomos todos, para parecermos muitos, passear e fazer compras à “vila” no carro bonito.   
Estacionámos junto à escola da prima Sofia, próximo da Dona Ana retail market e, depois de encomendarmos o pão, cozido em forno de lenha, das Fontes Ferrenhas, fomos beber o café, confortavelmente sentados na esplanada da Loulé Pizza; e o sol, e o meu cafezinho de água, e o meu pai a sorrir para a minha mãe, e ambos sorrindo para mim, e um mundo de gente revoluteando ou revolitando, o que é a mesmíssima coisa, pelo Largo de São Francisco, e eu felicíssima da vida, pois tudo era bonito, agradável e esplendoroso. Foi fantástico! Mas, ainda assim, tudo tem um fim e neste caso em particular, foi a ordem imperativa da minha mamã: Vamos que se faz tarde e, assim, de armas e bagagens, seguimos vida, ou seja, acertámos o passo na direcção da merceeiria, casa da fruta, padaria, charcutaria, etc e tal… da Dona Ana a “Gordicha”, o que para mim foi uma decepção; estava feitinha para ir ao mercado – adoro ver o meu papá, a regatear o preço, do peixe, da carne, da fruta e outros produtos mais, com os vendedores, eles dizem-lhe uma ele retruca-lhes outra até que lá acertam no peso, na medida e no preço por fim, parece um verdadeiro cigano. Um dia, quando for maior, quero ser como ele (já estou a treinar essas esgrimas verbais, mas isso é segredo, shuiiiii…), quero dar tanga aos vendedores, posso até afirmar, sem faltar à verdade, que estava em ferrinhos para começar hoje. Mas, a vida nem sempre é mãe às vezes também é madrasta e tive que pôr a viola ao saco e conformar-me. Não ia haver passeio ao mercado. O ritual, hoje, não se cumpriu; Pizzaria, mercado, “Gordicha” e casa. Ficámos pelos intercalados perdidos e mercado ”nestes hás de binóculos”. Viram-no vocês?... É que eu “nope”!...
Contrafeita lá fui pisando estrada ou melhor passeio… não podendo afirmar que: Cantando e rindo mas… lá fui no fito do almoço e do gelado.
Na verdade ocorreu um hiato de tempo que me varreu da memória alguns pormenores, por exemplo: O trajecto entre a lojinha da Dona Ana e a casa da avó Aurita, bem como o conteúdo do almoço e para cumulo nem me lembro de ter devorado o gelado que o meu pai me comprou, de certa forma como prémio de consolação, o que me cria uma sensação nítida de vazio, assim como se me tivessem estuprado uma parte muito singular da minha vida. Acho, se calhar, que este lapsus memoriae se deveu à contrariedade ocorrida na manhã – olhem que até fiquei ofendida. Aonde é que isto já se viu?!… não ir ao mercado ao sábado de manhã é crime lesa Laura, hum… como querem que me lembre do que fiz e almocei?!... Acham?!...  Ai, ai, ai,…, ai, ai tÓ mAnÉ… Olha que o rego já não vai direito.
Sorte das sortes! A tarde decorreu em alta, contrariamente ao PSI20 da sexta-feira anterior que foi revisto em baixa, e tal como o prometido. E, o prometido foi nem mais nem menos que uma ida ao Algarve Shopping Center que, incluiu como excursionista o primo André, pois o meu mano Pedro é um “escarapanudo” e nunca alinha nestas coisas pirosas; ele é os amigos, ele é o ginásio, ele é as gajas, ele é as big parties, etc… coisas de gajo peneirento.
A saída de casa, face aos padrões normais, ocorreu muito cedo, uma vez que o programa incluía uma secção cinematográfica e, a minha mãe, armada em forreta, resolveu ir comprar as pipocas, as águas e sei lá que mais… ao Jumbo que, segundo ela ficavam muito mais em conta e de qualidade – as pipocas – menos duvidosa que as do cinema que eu já vi como funciona o esquema, ora catrapisquem: Chegam em sacos de plástico enormes, frias, são enfiadas nas tulhas de vidro onde são aquecidas para depois serem vendidas, ao preço dos olhos da cara que não do outro também, como se fossem acabadinhas de fazer e, para cumulo, ainda as voltam a ensacar para o dia seguinte, isto é, são arrefentadas e requentadas vezes sem conta até ao seu términos, colocadas sabe Deus e os transportadores onde, ora mas que grande porcaria! Passe o eufemismo.
Pois é! Não é que já me descaí… chatice esta hem! Não vos queria contar que tínhamos estado a preparar uma ida ao cinema mas, esta minha boca grande não sabe estar calada, ora bolas! Como diz o raposo Swiper dos bonecos da Dora, a exploradora. Deveria ser uma surpresa para depois.
Antes, quero-vos contar ou falar do tempo que fiquei à perna solta ou de “soltura” ou à vara larga, chamem-lhe o que entenderem, com os “porreiraços” do papá e do primo, que por seu turno resolveram, enquanto a mamã não chegava – e se ela demorou – irem beber um cafezinho à lojita da Sical. Enquanto eles degustavam e não degustavam o precioso néctar, desatei a pintar a manta todinha, como me aprouve, ou o mesmo será dizer que, fartei-me de cabriolar, nem vos vou contar o que fiz ou deixei por fazer. Poupo-vos a esta!... eheheheheh… 
Tantas e seguidas dariam mau resultado e eu sabia-o! Mas, enquanto o pau vai e volta folgam as costas… E, assim, o meu pai, face ao teor da actuação, resolveu compensar-me. Imaginem que me levou até junto de uma menina grande e muito simpática (acho que ele queria arrastar a asa à “piquena” e estava a usar-me, indecentemente, como isco vivo para “anzolar” a moçoila, mas não faz mal, que eu contei tudinho à minha mãe; recompensa, recompensa mas, sem abusos, ora toma lá que é bacalhau…), que estava trabalhar na lojinha ambulante de compra e vende objectos de prata e ouro. Chegados ao local do crime, o meu pai, instigou-me a pedir um balão à menina grande mas, falou tão alto que ela ouviu – pudera não era surda com certeza – e logo se aprestou a dar-me um balão com uma haste longa de plástico branco encimada por uma espécie coroa, também de plástico; hoje em dia é tudo de plástico, onde estava preso um balão de um amarelo dourado fantástico; não me esqueci de, timidamente, agradecer. Balbuciei um: Obrigada, assim muito para o sumido e em surdina, ao qual a menina grande respondeu com um amplo e resplandecente sorriso.
Imediatamente dei as costas e fui brincar com o meu novo brinquedo, sob o olhar atento do meu pai que, maroto, ficou a dar tanga à miúda grande.
Enquanto a minha mãe deambulava pelo Jumbo, deleitando-se nas compras, nós (eu, o pai e o primo) entramos em rega-bofe total. Primeiro comecei a jogar ao balão, despreocupada com qualquer tipo de escala, sem largura ou comprimento, sem objectos ou transeuntes. Era tudo meu. Depois juntou-se o primo à brincadeira e a escala dilatou-se e, quando por fim, se reuniu o meu pai a escala extravasou qualquer tipo de limites. Estávamos imparáveis, como se refere agora muito em política, nós entrámos numa espiral não recessiva, o que é deveras deprimente, mas sim numa espiral hilariante e esfusiante. Pontapé aqui, chapada “acoli”, cabeçada além, palmada acolá, fazendo ou procurando fazer, o que nem sempre foi passível de alcançar, com que o balão não tocasse o chão. Uma orgia de boa disposição e de “estassecagandismo” por parte de três miúdos traquinas. Desta forma, quase dantesca conseguimos incomodar um Sopping e meio. Aí chegou a castração vestida sob a forma de mãe pendurada de sacos e,… findou a reinação.
O cinema. Oh! O cinema. Foi para todos os gostos, excepto para a mãe; alguém tinha que me acompanhar. O primo foi ver o Iron Man III (O Homem de Ferro III), o pai foi assistir ao Oblivion (Esquecido) e eu e a minha mãe escolhemos The Gladiators (Os Gladiadores). E, assim, cada qual, satisfeita a sua opção, acertou o relógio na hora do encontro após a secção final, pois cada secção começava à sua hora, e desabelhou. Foi muito giro este desconjuntamento geral, tal e qual uma debandada de estorninhos; cada um voa por seu lado para no final se juntarem em bando novamente – assim, nós nos assemelhávamos, porém só na revoada pois, quando chegou o momento da reunião, o caso tomou outras características e contornos. Foi o cabo dos trabalhos para se concretizar a união do bando extraviado, após o final de todas as secções cinéfilas.
Eu entendi que queria e deveria ir brincar, arrastando neste processo a mãe, com os “zingarelhos” que existem no pátio interior do Shopping, o meu pai raspou-se sabe Deus e ele para onde, desconfio que foi ver a menina grande, aquela que comprava prata e ouro na lojinha ambulante, e finalmente o primo, o mais fácil de encontrar, pois ficou especado à porta do cinema, acho que estava com medo de se perder e ver-se obrigado a calcorrear o caminho de volta. O facto é que no ponto de encontro ninguém se encontrava à hora previamente marcada.
Com o baixar do sol, começou a erguer-se uma brisa fria e desconfortável. O ponto de encontro deixou de ser aprazível e o meu pai não havia maneira de aparecer. A minha mãe iniciou um processo acidular, até que aos poucos e poucos esgotou de um todo a pouca paciência que ainda a povoava, dizendo: André fica com a tua prima que eu vou procurar o Tó, e, assim, fiquei à guarda do primo, enquanto a mãe disparou Shopping fora.
Sabem onde ela o encontrou?... Adivinhem lá… Não! Nem pensar. Eu digo-vos! No Jumbo às voltas com as “amantes” dele: Os livros. Acham isto normal?... E eu cheiinha de fome e o primo, esse esfaimado, nem se fala…
Logo que a minha mãe voltou disparámos os calcanhares rumo ao McDonald’s, onde nos espojámos, nuns sofás em plástico, duros e incómodos, na frente exterior do excelso estabelecimento. O primo André não esteve com meias medidas e logo, num ataque frontal à linha de batalha, se repimpou com um desmesurado menu; é grande “frieira” o bicho, arre! Eu até que o entendo, está a crescer, não sei para onde mas está! Só pode! Devorou um enorme hambúrguer com batatas fritas, ambos besuntados de toda a classe de molhos e bebeu uma Coca-Cola, um Big Mac foi como ele apelidou o menu. Este comportamento fez-me lembrar a minha avó Ilda que diz: Quando tem fome até vai a parvo, e é-o! Sem tirar nem pôr. Nem uma criança, como eu, faz uma figurinha assim.
Eis que, finalmente, o papazinho chegou. Apre! Já não era sem tempo. Trazia um arzinho de quem quer mas não pede, sorridente, satisfeito consigo e com a vida, assim como de… quem levou e gostou. Típico de quem a armou bem armada. Porém, menos-mal, a sua chegada despoletou o início da paparoca, uma vez que a minha mãe estava sitiada na vigia da prole, isto é, tomando conta de mim, como se tal fosse necessário, enquanto o primo, sem piedade, se alambazava, atacando com vigor redobrado, o seu menu Big Mac.
Canja de massa bolinhas com hortelã, foi a iguaria que o papá escolheu para o “Je”.
Estava quentíssima. Aí… eu adoro canja de massa de bolinhas, porém entre uma colherada e outra e para compensar o tempo de arrefecimento, saltitei de sofá para a mesa e vice-versa. Enquanto rodava este filme, o meu papá aproveitou o ensejo, uma vez que a sopeira era a mamã, para ir comprar pizzas, ou melhor fatias de pizza à Pizza Hut, das quais eu acabei por devorar parte do recheio. Eu tinha cá uma larica, lembram-se?!... Enquanto este despautério se avolumava, a mamã foi munir-se de algo comestível e, tal como o primo André, optou por um menu Big Mac. Quando ela chegou estava o meu pai a comer o que restou da canja, pois a sua dose havia sido debelada, em parte por mim – o meu paizinho gosta bué (muito de) canja, o que não deixou de ser uma sorte para ele – e atiçando-me um rabo de olho quando eu saía da risca invisível entre o bem e o mal ou entre o bom e o mau comportamento que, ele e só ele, havia desenhado para mim e só para mim. Não é justo! Não acham?...
Resumindo para não ir muito mais além.
O primo encarregou-se ou foi encarregado de tomar conta de mim; até parece que a fera aqui sou eu, e entre duas de brincadeira, roubava duas batatas fritas à minha mãe. Assim, o papá e a mamã acabaram por jantar, se é que se pode chamar jantar a semelhante travia, num sossego para o desassossegado. Findo o repasto os “lordes” apeteceram-lhe uns descafeinados e só depois de realizados e cumpridos os seus nobres desígnios é que soou o clarim de regresso ao quartel-general. Bolas já não era sem tempo! O pestana, aquele malvado, já me combatia sem trégua e cada ataque que perpetrava era mais feroz que o anterior.
Ufa!... Finalmente sentada na minha cadeirinha de transporte viário e o roncar dos 110 CV do motor diesel e a lenta trepidação do veículo em movimento. O meu mundo começou a diluir-se na sombra entre o real e o quimérico e a rodopiar entre o ser e não estar que, efectivamente deixou de estar para se imbuir no mundo do sono e do sonho. Apaguei algures, entre Faro - o Shopping - e Vale da Rosa, para a realidade… Porém antes, mesmo, mesmo no hiato entre o abrir e o fechar do obturador, ainda pensei: Sabem qual é a melhor coisa que Faro tem?...
- A estrada para Loulé!...
Eis-nos aportados no cais de domingo. O dia do Senhor. Não, não fui à missa, ainda sou pequenina, mas hei-de ir… porém já ouvi falar do menino Jesus, das palhinhas, da vaca e do burrinho.
Ora então vamos lá ao que interessa.
Para não quebrar a tradição ou abrir a excepção o meu pai levantou-se tarde. É um espertalhão, é o que ele é! Só se levanta cedo, ao fim-de-semana, quando que lhe é de conveniência; a caça, a pesca e pouco mais, mas eu já lhe topei a manha e, a mim, ele não me engana, não! Para ir à caça nunca lhe dói a cabeça nem as costas nem sabe-se lá o quê, passa-lhe logo a idade do com dor.
Também, e para não se perder o ritmo da instituição, foi a minha mãe que se levantou para ficar comigo, ela é assim como o anjo da guarda das minhas manhãs de fim-de-semana.
Estava eu a dizer-vos, à boca cheia, que o meu pai se tinha levantado tarde, mas não referi as horas. Pois é, assim para o lado das 11:00 horas.
Sorrateiro, levantou-se, despachou-se e papou o pequeno-almoço, tudo à sorrelfa. Estava ele já com um pé na rua e outro a sair de casa para ir à sua mais que tradicional, diria mesmo atávica, bica matinal em Loulé, quando vai de lá senão quando, e tal como diz o povo que é sábio: Cagou-lhe o cão no caminho, ou seja, a matreirice foi descoberta a tempo e foi-lhe imposto um travão para não dizer uma arreata que fica deselegante.    
Onde pensas que vais? Pergunta-lhe a minha mãezinha. E, sem aguardar resposta, por evidente, mais sabia a mãe qual era o fito, retrucou: O almoço quem o faz? Acrescentando ainda: Bebe um Nespresso e trata de te agarrares à massada de peixe que são mais que horas e tu na cozinha é o que nós sabemos, devagar, devagarinho e parado. Se querias ir a Loulé porque não te levantas-te mais cedo? A cabeça da corvina está na arca congeladora.
E, assim, a conversa teve um ponto parágrafo. Sabem?... Acho que o meu paizinho não ficou nada satisfeito e tão pouco feliz com a ideia. Contudo, meteu o rabo entre as pernas, e dedicou-se à árdua tarefa de fazer o almoço, não julguem que é pêra doce fazer massada de peixe, enquanto a mãezinha continuou a empenhar-se e embrenhar-se na sua tese de mestrado, depois de velha ou cota como agora está em voga, é que lhe deu este “achaque ou quiçá menopausa” intelectual, consumindo os dias agarrada ao computador; pesquisando, estudando, escrevendo, etc…, nem sei para quê… enquanto o papá tem que alancar com os “domésticos”… ai, ai, ai,…   
E, entre azedos, azedumes e palavras trituradas entre os dentes lá se foi escoando a manhã e se engoliu o almoço; a massada de peixe estava um mimo.
Encerrado este, onde entre umas mais directas e outras mais enviusadas, o meu pai foi logo alertando que tinha que desanuviar a cabeça para exorcizar o mau feitio e que talvez fosse ver o mar, lá-lá-lará…  e ri-piu-piu passarinhos ao ninho…
O certo é que ainda bem não tinha engolido a fruta, e antes que a mamã, sonhasse com alguma, já estava a dar de “frosques”, atirando, quase em forma de sibilo surdo, um: vou beber café a Quarteira, ler um pouco; clássico nele, e encher um garrafão com água do mar para efectuar um combate efectivo à sinusite – o meu pai sofre muito com a sinusite. Acreditem eu ouço-o!... Ronca que se farta.
Para além do mencionado, o meu pai é um homem cheio de incumbências, tipo mil ofícios, ainda informou a minha mãe que: Ia, para ter sossego (eu sei que ele se estava a referir a mim, não sei porquê, pois sou até muito sossegadinha e tudo), para o trabalho dele, fazer a reclamação da tua avaliação de desempenho (não sei o que vem a ser isso mas deve ser importante – o trabalho é sagrado, pelo que eu não lhe toco). Ah! Quase me esquecia, para além do referido, ainda tinha intenção de dar um saltinho a casa da avó Aurita para se inteirar da gravidade do seu estado de saúde; ela, ultimamente, tem passado mal, quer dizer pior, porque mal ela anda sempre.      
Agora aqui para nós que ninguém nos ouve. Não acham muita coisa a fazer em tão curto espaço de tempo (o almoço terminou tardíssimo)? Será que não irá ter que dormir fora de casa?... Faço votos para que não, senão a minha mãe não vai ficar nada satisfeita, não vai, não!...
Com o meu pai fora e a minha mãe babando em cima do computador, fiquei quase por minha conta. Quase disse eu e isto porquê? Porque logo, o par de jarras, a minha avó Ilda e a minha tia Vitalina, apareceram, como dois espectros fantasmagóricos a ensombrarem a minha efémera liberdade, para fazerem as honras da casa, bem como, o árduo trabalho de acompanhamento contínuo das minhas actividades, peripécias e tropelias.
Neste vaivém o mais impiedoso dos impiedosos foi passando. Trazendo agarrado a ele, como uma pele emprestada, o final de tarde e com ele o arrebol onde o meu pai vinha imbuído dando um ar da sua graça, que de graça nada tinha, uma vez que vinha que não se tragava, pior que vinho feito a martelo. Azedo! Era um qualificativo que passaria despercebido enquanto eufemismo dos eufemismos…
Ele vinha que não vinha, ele estava que não estava! Essa é que é essa!...
Pelo que entendi ou melhor ouvi mas não entendi, o trabalho que o meu pai tinha feito para o serviço da minha mãe, ficou perdido numa memória dispersa do computador ou talvez não na memória mas sim na vaga ideia, ou seja, desapareceu antes de ser gravado. Segundo ele no momento de gravar cometeu uma calinada qualquer e ups… Lá foi tudo para o maneta (coisas da vida, não acham?...).
Resumindo e baralhando o ambiente de ocaso ficou um pouco para o contaminado de um halo peçonhento de mau humor ou mesmo da linha do impossível. E, apesar da água fria que a mamã tentava colocar na fervura a temperatura não baixava e o meu pai continuava a ferver (em pouca ou muita água, pouco se lhe fazia: fervia e a bom ferver!) e proferia: Fiz uma reclamação brilhante, refazê-la era impossível, nem próximo, pois inspiração de nível superior só acontece de quando em onde e, aquele tinha sido um dos momentos de sumidade, de coqueluche, ímpar de intelectualidade; humildade não lhe falta, toparam?... Por seu turno a mãe retorquia-lhe: Deixa lá. Não tem importância. Amanhã de cabeça mais fresca, vais ver, que te vais sair bem. Etc, etc, etc,…  Todavia o meu pai continuava a bufar que nem um touro em arena tauromáquica e, acima de tudo, estava inconsolável.
Entre duas de malabarismo e no meio de coisas e loisas o tempo, irremediavelmente, foi escorrendo, como areia, de uma redoma para a outra no interior da ampulheta ou relógio de areia, tal como nós no banho, só que aquele, o tempo, não tem toalha para lhe limpar as misérias, por isso, não seca e escorre, escorre sem parar.
Ele escorre para a hora de jantar, ele escorre para a hora dos bonecos, ele escorre para a hora de sornar e, por fim, ele escorre para o tempo que não tem tempo para parar, numa sequência intemporal de escorrência temporal.   
Bem chega de filosofar.
Até amanhã meninos que a Laura, a marafada da pena, vai fazer um óica.


         
 tÓ mAnÉ   (in Laura Solange dixit) - 2013.04.(27,28)

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