quarta-feira, 20 de julho de 2011

Consciência de uma realidade

A manhã estava mesmo a romper, a claridade rompia a apatia da memória das trevas, e novo dia iluminava a consciência de uma realidade tão obscura quanto o negro da noite; inusitadamente diáfano, quanto inerte na sua suposta bestialidade. Abraço-me à almofada; mulher terna e aveludada, dada a confissões e muda na sua eterna sabedoria, acaricio-a, com mão leve e extremosa, deliciando-me com a sua ternura; sensação indelével de um calor imanente à sua condição de mulher forjada na mente de quem acorda só e só se deita. Abro a pálpebra, orbe de um mundo laranja; cor do pardieiro a que pomposamente chamo de quarto, a luz fere o sentimento de mim reclamando a permanência da minha ausência; abstinência de ser, ser eu, rudimento de uma existência translúcida, que insiste no périplo, indecente entre o ser eu e o eu de ser gente.
A luz rasga-me os sentidos adormecidos; sedados, num pacto silencioso entre o eu, a alcova e a mulher almofada, numa noite que não o chegou a ser, todavia o pretendeu, ficando decerto a intenção que a lua cheia apadrinhou mas não ousou acarinhar, certo é e bem certo que o grito surdo se quedou na minha garganta não deixando transparecer que, na realidade o meu eu não estava ali, alado deambulava pela esfera da minha insatisfação, impertinência e incongruência, roçando o limiar da irreverência de um ser que não conhece a tranquilidade e abre as suas asas de Ícaro ao mundo, sabendo prematuramente que a queda é irremediável, mas caí, lançando-se num vazio de alma para, numa tentativa inútil, recuperar a alma que perdeu e/ou deixou para trás, vendida a uma natureza indómita de quem não aceita a condição que o dia a dia lhe tenta impingir como dado, irrefutavelmente, adquirido.
A luz, ao abrir da manhã, derramou nos meus olhos as primeiras, das muitas lágrimas, que a injustiça brinda das zero às vinte e quatro a existência daqueles, que como eu, vivem num sem mundo, naquele planeta ovóide que não nos inclui, tange-nos apenas; roça-nos, permitindo-nos unicamente o desfrute de uma pequena réstia do seu calor, um afago, uma carícia, todavia nunca chegando a um aconchego, muito menos paz; nós, os sem mundo, vivemos num permanente desassossego, sofrendo do mal da (im)paz, que nos rasga a alma, deixando as cicatrizes, provocadas pelas garras da paz podre dos que vivem em harmonia com a desarmonia vigente.
Alguma vez me ouviste gritar neste sono acordado em que vivo?…
Será porque a morte me alcançou, neste corpo ainda vivído, contudo numa alma, que já morta, ainda teimosamente se atreve a viver, daquilo que outros procuram matar por inconveniente?...
A paz não vive comigo!... Será que eu conseguirei viver com a paz e/ou em paz?...
Tenho a minha, mas que é só minha, harmonia, essa é a minha loucura, aquela que mantém viva a minha sanidade, trazendo de mim e para mim a justiça da desigualdade.
Será crime ser diferente, pensar distante, olhar mais à frente?…
Não ser o que vejo mas ser o que devo ver?…
Abraçar o inatingível como se da realidade se tratasse … é crime?...
Então, eu, não passo de um vulgar criminoso!... Alcatraz por castigo…
Quo vadis?...
Bem vinda à selva” disse a aranha à mosca.

tÓ mAnÉ

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