terça-feira, 19 de julho de 2011

A vizinha, o mar e o amola tesouras

Tenho que sair de casa, vou deixar o meu filho só por algum tempo, olho para trás e, tal como em outras ocasiões, recomendo-lhe que não abra a porta a ninguém, sem excepção, questão de precaução, pois é pela enésima vez que o aviso se repete; a conversa é a mesma sempre que necessito de deixá-lo só. Quando vou a iniciar a descensão do segundo lanço de escadas, confronto-me com uma fulana; esta assemelha-se com a vizinha, executando o movimento inverso. Estacamos!...
- Boa tarde!
- Boa tarde! vou falar com o Pedro.
- É inútil, ele não vai abrir a porta a ninguém. O que é que pretende do meu filho?...
- Assuntos nossos...
- Se assim é...
Retomei a descida das escadas, pensando com os meus botões, perda de tempo, o miúdo não vai abrir a porta. Ouvi, distintamente, a campainha da porta; sorri, porém por pouco tempo, para espanto meu ouvi o clique da fechadura e instante imediato a porta a escancarar-se. Arrepiei caminho, irritado, subo as escadas duas a duas e... não havia vizinha, imaterializara-se, obstruindo a porta estava o Pedro, que usava os meus óculos, ostentando uma personalidade e uma postura com uma maturidade irrepreensível, de tal forma que fiquei completamente desarmado; impossível a repreensão, esta regressou humilhada ao recôndito local de onde saíra, impulsiva, instantes antes.
Como que vinda do nada, esboçando um esgar na fauce e esfuziante, a “semelhança” da vizinha, olhando-me profundamente nos olhos e… à guisa de desafio, retruque: está a ver...
... No meio de um oceano de águas calmas, azuladas e geladas, navego, acompanhado de uma mulher e três crianças, num colchão de praia. O frio é insuportável, no entanto e apesar de algo imersos na água gelada, não sofremos de hipotermia; o que acho incompreensivelmente estranho. Olho para as crianças e constato que uma delas usava uma “Tshirt” esfarrapada e umas bermudas verde choque e as outras duas envergavam apenas calções de banho, boiando na posição invertida (rosto para dentro de água – posição do afogado) na água gélida, a sua pele apresentava uma tez branca acinzentada; tez de cadáver. Numa primeira análise achei natural e não me preocupei muito com o assunto; era, para mim, natural o cariz contra-natura, desta profusão de pinceladas surrealistas. E, nesta apatia inumana, comento com a mulher que se encontra a meu lado “o nosso filho está morto...”, o olhar vidrado da mulher, num rosto já ausente de expressão, projecta-me contra o grotesco da tela em si, e de supetão entro em mim. Agarro na criança, que bóia de cabeça imersa na água gelada, ergo-a, abano-a e grito: filho, filho... não te vás embora, não partas, não me deixes, fica, fica... e, grito, grito,... Vindo de muito longe oiço um murmúrio, e mais um após outro, a criança, entreabre os olhos e numa voz ténue, quase imperceptível, ouço um rumorejar que me vai, em surdina, dizendo: pai, pai... ajuda-me, ajuda-me...
O frio é glacial, soergo a criança, aperto-a contra o peito, aconchego-a, sinto o frio do seu corpo penetrar o meu e a sua alma, pequena grande alma, voltar ao seu pequeno grande corpo, elevando, com ela, a felicidade e a alegria na minha. Nesta embriaguez de felicidade e alegria, esqueci completamente todos os outros. Afinal a única coisa importante, naquele momento, era um “nós”; eu e o meu filho, que renascera das águas geladas, tal como Fénix renasceu das cinzas, ousei pensar…
… Ao longe, fora, muita fora da imensidão azul, lá muito longe pareceu-me ouvir um som doce e familiar, sim era o som do apito de um amola tesouras, há anos que não ouvia aquele som, ao mesmo tempo, estridente, doce e melodioso. Relembrei a minha infância e… chorei, chorei, chorei… chorei de felicidade!

tÓ mAnÉ

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