terça-feira, 19 de julho de 2011

A capela e a procissão

Num local desconhecido, num cenário desconhecido, entre pessoas desconhecidas, e... sem mais nem ontem... (inusitadamente); inicia-se uma procissão. Eu, e o Francisco (namorado da Séfora) - um amigo; conhecido, digo um “aminhecido”, encontrávamo-nos sentados na margem de uma ribeira ou um tanque, sei lá... a imagem tem contornos assaz difusos; é como se existisse uma certa ubiquidade na presença da nossa existência.
... E, a procissão passa e passa, o ritmo é lento, a multidão é um emaranhado de gente e espaço, como se de um bosque, cheio de clareiras, se tratasse, e a música vinda de nenhures – parte alguma -, assemelha-se a uma esfera rolando sobre o plano inclinado, representado pelo compasso pendular do deslocamento espacial da procissão... e o ritmo é lento, lento e lento... penso, por um breve instante, que se trata da procissão em homenagem a Nossa Senhora da Piedade, mas apenas por um instante; a multidão, pese embora disforme, é pouca; não pode ser a “Festa Grande”, e o ritmo é lento, e é inverno; não é época, não chove, mas faz frio, muito frio; é Outubro, finais de Outubro, no entanto, abandono o local onde me encontro, juntamente com o Francisco, preparando-me para acompanhar o andor e efectuar a subida ao Santuário, derradeira casa da Santa, como aconteceu, até onde a memória me leva, antanho.
Oi!!!... o que está acontecendo, não percebo, mas... não é um e um só andor; é Outubro, é bem certo, achei estranho, mas..., uma miríade de andores não corresponde às lembranças que o tempo, por cruel que seja, possa apagar; um e apenas um... sempre assim foi e assim será, a memória é uma meretriz, e como tal, não engana; pensei... . Entre a miríade de andores, vislumbrei um que, desde logo, me despertou a atenção; o que é que o Zé Felisberto faz ali? um ímpio militante!... clamando, gritando, numa voz rouca, e numa cantoria infernal, entoava um hino em louvor da Senhora das Assomadas ou Cumeadas, não posso precisar, uma vez que o espaço se transformou em tempo, levando com ele andor e ímpio, numa espécie de vómito de bruma, transmudando o ritmo, o espaço, a multidão e a música; até o Francisco, como por magia, se eclipsa, dando lugar a uma rapariga; conhecida, ostentando um enorme chapéu em pedra e com a forma de um coelho. Observo-a e penso: como é possível carregar semelhante “gingamocho”. Emmentes, com a cabeça a oscilar para trás, para a frente e para ambos os lados, o seu corpo, carregadíssimo, mantém um equilíbrio instável e inverosímil. Ofereço os meus préstimos, que ela recusa veementemente. Acompanho-a durante algum tempo na árdua tarefa, a dela, de subir ao topo do outeiro, onde permanece há gerações a velha, que agora é nova e velha, capela; por quem orará o “chapelão” de coelho?...
Perco-me da realidade do sonho, entro num “inter-sonho ou melhor num buraco negro do sonho” estou no limbo da realidade, ou seja, será que é sonho?... Vejo-me no cimo de um monte, olhando uma plataforma e sobre ela (estou do lado de fora do meu sonho; vejo-me e observo-me!...) vejo o meu “Pseudo-Eu”, no bordo da plataforma, e separando esta de um abismo, existe uma parede de pedra, rebordada no topo por um parapeito de alvenaria pintado de branco; uma sinopse entre o “Eu” e o “Pseudo-Eu”. Do meu posto de observação, seguro, vejo, sobre a plataforma, a minha sinopse e a Idalina (uma velha conhecida), acompanhada por duas amigas, que me olham reprovadoramente, gritando estridentemente, e em tom acusativo “é verde!, é verde!,...”. Procuro afastar-me, como que culpado de algo de que não perscruto a culpa, mas os espectros da minha culpa, materializados na Idalina e amigas, perseguem-me, com esta a gritar compulsivamente “é verde!, é verde!,...”, procuro não ligar, ou melhor desligar, mas o olhar das amigas, continua, obstinadamente, direccionado a mim e cada vez mais intenso e acusador. Procuro questionar porquê? e o que é que é verde? como resposta as amigas “as outras”, aproximam-se ameaçadoras e a Idalina grita a mesma litania: é verde! é verde!..., farto e rancoroso, respondo: és parva!... e ponto final parágrafo... Os espectros, como por magia volatilizaram-se.
Vejo então, abrindo-se na bruma, o frontal da capela, onde jaze uma enorme porta de madeira trabalhada, encimada por um soberbo arco gótico em gablete. Paro, escuto e olho, dos espectros; nada! Empurro a porta, que se encontra entreaberta, no interior revejo o Francisco, que a pouco e pouco, se vai transmudando, tomando a forma de mulher. Ao canto, deitada numa cama, vejo também, uma Santa (é uma Santa! desconheço o porquê da ilação, mas... sem dúvida é uma Santa!...), dirijo-me a ela, cumprimento com a dignidade apropriada à Senhora, entabulo uma conversação durante um curto espaço de tempo, desta não guardo memória, guardo sim a memória dos dois beijos que ela me exige, de forma tão doce e meiga que se torna impensável, direi mesmo impossível, qualquer acto de recusa por imposição. Coloquei-lhe os beijos na face e de imediato, a Santa, delicadamente pede licença para se retirar, esclarecendo que necessita de se deslocar à casa de banho; fico perplexo... à casa de banho???... No intervalo de tempo recorrente, a transmutação do Francisco em mulher; Dircineia, completa-se e este(a) acompanha a Santa, que se levanta com a sua ajuda, ao privado. Este, é parte nenhuma no interior da capela, situando-se junto a um espelho e de privado nada tem; lembro porém, que de soslaio e reflectido no espelho, a Dircineia, comentar que ela era a única pessoa do mundo que sabia efectuar aquele trabalho, lembro ainda ter pensado: grande caca, pôr uma Santa a urinar! Emmeio, e no instante seguinte, logo me arrependo, uma vez que a Santa urinava de pé, com as suas calças pretas vestidas e, imaginem, sem molhar o chão da capela. A Dircineia, após esta manobra sui generis olhos para mim e disse: só eu sei quando ela começa e acaba; baixou os olhos novamente, pegou numa folha de papel macio (PH), passou-o, suavemente, sobre as calças, na origem das coordenadas da Santa (y). A Santa regressou à cama da mesma forma que saiu; caças pretas, blusa vermelha, cabelo e sobrancelhas azeviche, e de facto, constatei, não molhou nem chão da capela, nem calças pretas, porém o papel estava ensopado. Pensei “só mesmo tu mulher “Francisco”... Dircineia”...
Sou atirado contra a rua; peco por pensamentos (penso … logo peco, logo castigo, logo arrependimento, logo volto a pensar…).
Na encosta sobranceira à capela vejo um tornado de pó que se aproxima a uma velocidade inimaginável, formando uma coluna em espiral. É um touro desencabrestado, correndo na direcção do adro da capela; voando contra o tempo e devorando espaço; de mim, para mim e contra mim. Mal tenho tempo para, ineptamente, subir a um muro que liga a capela a um enorme portal e saltar para as abas de um desmesurado plátano; este “zingarelho” todo pareceu-me levar uma eternidade e foi obtido mediante um esforço hercúleo. Não tive ou não quis ter tempo para avisar ninguém... acho, mesmo, que a minha única preocupação foi fugir à besta... e hei-o na praça principal, marrando numa criança de sexo indefinido, originando um baque oco, semelhante ao de uma abóbora atirada, violentamente, ao chão... repentinamente aparece o meu irmão, que desempenha um papel relevante na estória do touro, porém perdida nos meandros tortuosos da minha memória... meretriz mas honesta. Lembro porém, que foi a partir desse instante que o animal investe sobre mim ou melhor sobre o local onde me encontrava. Tentei e consegui subir mais alto, entrelaçado na teia de galhos do plátano... o que era sempre pouco, a besta, crescia e crescia, quase me tocava o fundilho das calças (que não eram pretas), pois naquele momento estava tenazmente agarrado aos ramos da árvore na posição de macaco; corpo arqueado convexamente no sentido do chão e suspenso pelos braços e pernas, sentindo o bafo quente e ofegante da besta. Aí, percutido pelo medo, elevei a perna e coloquei o pé na aldraba de um portão descomunal, encimado por duas gárgulas que jorravam um líquido leitoso... salto no tempo…, estou a tentar subir a uma das gárgulas, o touro já não existe, aliás já nada existe, apenas eu, o portão, a gárgula e um precipício imenso, caio, entro em queda livre e... acordo encharcado em suor e penso... é um sonho bolas!... 

tÓ mAnÉ

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