quarta-feira, 20 de julho de 2011

Coisas de verdade (semi-fresco de melancia)

A tarde de Coimbra, naquele fim de primavera, em meados da década de oitenta, estava quente e luminosa. O sol enchia de vida a Rua da Sofia, convidando o transeunte a fazer uma pausa para refrescar a garganta e a alma. Entre uma multidão, duas criaturas, alheadas da azafama e do bulício envolvente, caminhavam calma e descontraidamente, atitude de quem pouca ou nenhuma responsabilidade lhe recai sobre os ombros, olhando para tudo e lado nenhum, prestando atenção especial a uma ou outra moça mais ousada ou com atributos destacáveis, fazendo um comentário atrevidote ou um simples olhar cúmplice. E, assim ia a tarde do António e do Chico, dois estudantes enrolados no trajo académico, a abrasar, a destilar e a começar a ansiar por uma cerveja bem geladinha. Entre duas de conversa, um cigarro e três passadas indolentes alguém chamou a si o bom senso dizendo: Está um calor do “camano”, vamos pôr o esqueleto à sombra, e comer e beber qualquer coisa. E assim foi …
- Onde vamos, pergunta o Chico?
- Olha! Conheço um tasco, aqui ao pé que é à maneira, vamos lá?
- Bute!
Demos corda aos sapatos e como “quem vai num pé e fica lá” já púnhamos a albarda nos bancos corridos do boteco que, na realidade, mais era uma tasca fina.
- Não conhecia isto, returque o Chico!
- Passas a vida na Alta, só conheces tascas de cuspir para o chão…
- Oh Tó (o Chico tratava-me por Tó) deixa-te de merdas! Vais ver… vamos pagar uma pipa de massa e vamos comer bem pior que no Museu (tasco da cidade Alta). Quanto custa um fino?...
- Sei lá, só aqui estive uma vez, lembras-te daquela caloira ruiva e toda “cagadinha” das moscas…  
Abriu-se o momento de reflexão, acenderam-se dois cigarros, mais um momento de contemplação; pensamento saltando em pensamento, e foi aí que me ocorreu “armar a gata ao Chico.
- Chico! Quando estive cá bebi um semi-fresco de melancia, estava um espanto.
- Issssssssssssso!... Só vias a caloira…, arremessou o Chico séptico.
O silencio, mais umas passas nos cigarros, uma olhadela à mobília outra à rua pejada de gente… quando uma voz interrompeu este estado de letargia.
- Querem tomar alguma coisa?...
Apanhados de surpresa, vacilamos… o que é que queres, pergunta-me o Chico?
- Pode ser um fino e um pires de orelha de porco ensalsada.
- Não queres antes uma travessa de ossos, deita o Chico para o ar?
- Não! Não me apetece ossos, está calor do caraças e os ossos vêm quentíssimos.
O Chico que tinha um feitio tipo “enxertado em corno de cabra”, e não gostava de ser contrariado voltou à carga: vá lá faz-me companhia, ossos só para um é muita coisa…
- Não! porque não bebes antes um semi-fresco (estava a encanar a perna à rã) com uma sandes de qualquer coisa? Olha de leitão aqui é catita!
O empregado de mesa, face ao impasse decisório, resolveu dar de costas, sem cerimónias, refugiando-se no balcão e aguardando melhores ventos ou melhores clientes.
Nesta pega e não pega, finalmente o Chico, o que não é fácil diga-se, convenceu-se a ir numa suculenta sandes mista acompanhada pelo celebérrimo semi-fresco de melancia. Após chamar a atenção do empregado, que se dirigiu de imediato à mesa, a indagar pelo pedido, o Chico, muito compenetrado do seu papel de cliente decidido e com um tom de voz forte, contrastando com a sua figura baixa, algo forte e tez clara, rugiu: para o meu colega um fino e orelha ensalsada e para mim uma sandes de mista e um semi-fresco de melancia. O empregado anotou o pedido, virou as costas, porém não avançou mais que dois passos, voltou-se e retrucou: semi-fresco de melancia???... isso não existe!
O Chico, vermelho de indignado, respondeu-lhe: existe pois, o meu colega já aqui bebeu essa mistela. Aí o empregado, apaziguador, volta à carga: não o seu colega deve estar equivocado… cortando a deixa do empregado o Chico volta-se para mim, vermelho como um pimentão: que conversa é esta, tu não bebeste aqui…, a conter o riso o melhor que podia e virando a cara para o lado respondi: és parvo, claro que bebi! o empregado deve ser novo na casa, ainda não está a par de tudo. A partir deste momento o Chico e o empregado travaram-se de razões, um que sim outro que não, até que o Chico já lívido de raiva se dirigiu ao balcão para falar, segundo as suas palavras, “com o dono desta espelunca”. Cabe aqui uma ressalva à personalidade impulsiva e reivindicativa do Chico, que extravasava muitas vezes a racionalidade. O diálogo entre o Chico e o “dono da espelunca”, mantém-se até hoje entre ambas as conchas do bivalve, mas o corolário traduz-se num punhado de palavras, que seguidamente se expressam: o Chico, abandonou o estabelecimento em passo acelerado, não bateu a porta porque estava aberta, de rosto congestionado, deixando para trás os cigarros, o isqueiro e a capa (não deixou o telemóvel porque, à época, esse tipo de equipamentos não cabia na(o) bolsa(o) de estudante). A entrega dos bens em causa revelou-se uma tarefa hercúlea; o Chico ausentou-se para parte incerta durante um período de tempo, mais que suficiente, para recuperar o seu orgulho ferido pela ignomínia.
Moral da estória não faças ao Chico o que não gostavas que te fizessem a ti.
Hoje o Chico contínua amigo do António/Tó, narrador da estória. 

tÓ mAnÉ           

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