sexta-feira, 12 de julho de 2013

A janela do sonho



Ontem à noite a minha mulher pediu-me para que ficasse com a nossa filha na nossa cama para que lhe vigiasse a noite, o sono. Estava apreensiva por causa da queda ocorrida, na tarde, na aula de dança, onde embateu, com alguma violência, com a nuca no chão; resguardo de 24:00 horas por via das dúvidas ou por afectação à segurança, apesar de ela se encontrar bem disposta e estar: ela como só ela só.
Acedi, sabendo à partida que não iria resultar em sono ou melhor em horas de descanso efectivo, horas que já vinham a ser jogadas fora do relógio do descanso para a qualidade de vida, do desassossego provindo das noites anteriores. Assim, quer o corpo quer o espírito, já vinham a reclamar veemente por sossego, paz e descanso, elementos que à partida não se conjugavam com a situação pendente.
E, por saber, de outros carnavais, o que a casa gasta, era mais uma promessa ou melhor uma certeza que o descanso tão almejado ainda não era desta que veria a luz do dia ou morderia a quietude e o silêncio da noite. Mas, como referi, tolerante, acedi, na esperança mais que vã que desta vez seria diferente, é sempre assim a esperança acredita mais que nós.
Quando cheguei à cama para me deitar passavam trinta e cinco minutos das 23:00 horas. A minha filha dormia tal e qual um anjinho, cândida, não se denotava movimento, ténue que fosse, que não um respirar leve e morno. Dormia o sono dos justos, dos infantes.
Deitei-me, após ter colocado em cima do travesseiro a almofada de ler. Agarrei As Cinquenta Sombras de Grey de E. L. James, afofei-me, buscando um pouco mais de conforto no conjunto, já de si periclitante e desarticulado, do sistema cama, travesseiro, almofada, livro e eu. Aconchegado, o quanto bastasse mas não o suficiente, abri o livro na página onde o marcador dormia e iniciei a minha higiene mental diária; não que o livro se preste muito a isso - literatura de cordel, também faz falta mas muito de vez em quando -, o ritual de pertencer a mim e só a mim por um período indeterminado de tempo até estar prestes a cair no abismo do cansaço e na modorra do sono. Aí levanto-me, verto os fluidos clorídricos e zus vale de lençóis. Um clique do interruptor do candeeiro de mesa-de-cabeceira, um escuro repentino, um ajeitar de lençol e edredão e um partir rumo a um mundo pardacento de sombras; a inconsciência voluntária do sono.  
Ontem, recordo, que esta pletora de manobras foi executada com luvas de pelica, não fosse o anjinho despertar.
Luz apagada. Meia volta ou volta e meia, encontrei a posição do zeeeee… Estava eu em vórtice direccionado ao buraco negro da inconsciência, à beira do apagão e eis que o reboliço começa; é sempre assim nem sei porque me sobressaltei, num ápice, de anjinho de sossego passa a anjinho do desassossego, desata a espernear, atingindo-me as costas e a bolinha do pensamento.
Acabrunhado, com o coração a querer saltar-me pela boca, passo de uma semi-inconsciência para um limbo entre uma forma meio atoleimada, desnorteada, desconcertada e ofegante, nem meio cá nem meio lá, antes pelo contrário, vogando-me na mente um sentimento difuso, incongruente de um: o que se passa, onde estou, agarra que é ladrão?... e um arranjo desconcertante de uma consciência semi-perdida na ilusão do sonho.
Caio dolorosamente no mundo do eu, numa atroz consciência de mim: acordei e agora? Entrei em desarmonia e subitamente um pânico insano apoderou-se de mim, povoando-me a mente uma realidade obscura, inclemente, como um pesadelo vívido: agora não vou conseguir dormir mais, mais uma noite em branco, o coração voou-me do peito para o cérebro latejando-me nas têmporas, agrilhoado ao pressentimento duma insónia iminente coadjuvada a duas noites praticamente insones.
Lancinante, excruciante, flamejante como uma escorva percutada no interior do cartucho de uma bala dando inicio à deflagração da pólvora e ao consequente disparo do projéctil, a ideia incrustou-se em mim, retumba e entra em rotação conjugada com um movimento uniformemente acelerado, percorrendo distâncias incalculáveis no meu sistema neurotransmissor, tal e qual uma bala ao sair do cano de uma arma de fogo no cumprimento do seu trajecto parabólico até ao impacto final, inventando em mim a imagem, tenebrosa, do cumprimento de mais um dia de trabalho, lambuzado do cansaço acrescido de mais dois que passaram.
Levantei-me. Urinei. Dirigi-me ao quarto da Laura onde, plácida, alheia, a Maria dorme, dorme a sono solto e repousante. Hesitei. Retornei ao quarto. Sobre a cama a Laura, dorme, espalhada sobre o plano transversal. Ajeitei-a, sobre o plano perpendicular à cabeceira. Tornei à cama. Apaguei a luz e, alvoraçado, procurei conciliar o sono que, contumaz, tardou.
Esperneou, escoicinhou de novo a petiz e o meu coração, já alerta, desenfreou-se, cavalgou livre, dento de mim, a rédea solta, galopou, troando-me nas entranhas, explodindo-me os sentidos, desembestou, desencabrestou, espezinhando-me e embotando-me a razão. Aí, rasgou-se-me no cérebro um clarão um grito: assim não dá!... Acendi a luz. Levantei-me. A criança dormia enlevada e perdida em sonhos.
Mexia e remexia. Presumi que tinha calor. Descalcei-lhe as meias. Beijei-lhe, ternamente, os pezinhos. E, aguardei. Tudo, agora, parecia acalmia, remanso.
Passo ante passo, silenciosamente, dirigi-me ao quarto do lado, inclinei-me suavemente sobre a Maria e sibilei-lhe ao ouvido de mansinho: troca de cama comigo. Senti-me um baderna. O cansaço, porém, gritava mais alto e o coração ainda me batia forte no peito.
Alfim mudei de quarto de cama mas a paz não alcancei, teimei em não adormecer. Porra! Merda de feitio este! Pensei.   
Não houve Pai Nossos nem Avé Marias que me valessem ou consolassem a alma em desalmada dessincronização, agarrei-me, em última instância, a uma ovelha de pelúcia, pertença da minha filha, para consolar a alma tal como um naufrago se agarra, à sua última esperança, encerrada, na última tábua que resta do naufrágio. Resultou, por fim descansei. Acordei, ao toque do despertador, ainda abraçado à ovelha. Idolatria?!… Talvez!?... Il faux pas
Acordei, acordei sob a harmonia das cordas da harpa e a égide da felicidade, que derramaram sobre mim a boa nova: a minha filha acordou hoje para o sonho. 
A minha filha hoje, pela manhã, disse: mãe, sonhei com a praia, com o mar e com muita água. Este é o primeiro contacto, consciente, da Laura com o mundo dos sonhos, a minha filha teve o conhecimento ou o reconhecimento do sonho. Finalmente a Laura descobriu e aprendeu o que é sonhar ou como é o sonhar; abriu mais uma janela do seu ainda pequeno mundo, a janela da consciência do sonho, uma etapa importante no seu difícil abrolhar para a vida.
Este evento trouxe-me uma felicidade intensa, imensa, desmesurada e a incumbência, desmedida, de lhe semear, implantar um sonho.

tÓ mAnÉ style 

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