sexta-feira, 12 de julho de 2013

A pedra



Vou-vos contar uma estória, uma estória daquelas que não são na realidade uma estória mas sim uma história a sério, daquelas que não vêm nos livros de "histórias".
Era uma vez uma pedra, como outra pedra qualquer, só que na realidade não era uma pedra qualquer, apesar da sua singularidade; maneira, quase esférica, basáltica, raiada com um meridiano em feldspato, proveniente dos rebolos da praia da Pipa em Aljezur, localizada a noroeste da praia do Monte Clérigo.
Um belo dia, anos, que a minha memória não pode recordar por não haver ainda nascido, se volveram sobre ele, o Manuel Vicente e o António Monteiro, pai e filho, foram pescar à Pipa, e se travaram de razões por motivo de força menor ou por dá cá aquela palha e ficaram de costas ou de feitios ou ainda de candeias às avessas, deixando-se de falar por um longo período de tempo, o período de um longo semestre de curso de Direito em Coimbra.
Findo o semestre o António regressou ao Vale da Telha onde vivia com o seu pai,   Manuel, devo aqui dizer ou abrir um parêntesis que quer Manuel quer o António para além da relação paternal unia-os uma relação de profunda amizade, talvez por falta de uma mulher e de uma mãe; Maria José de sua Graça ou Marquinhas como era conhecida quer no Vale da Telha quer em Aljezur, mulher de personalidade forte e duma generosidade e bonomia sem limites, ou porque ambos eram pescadores e caçadores ou porque um era agricultor e o outro almejara um dia sê-lo, mas um acidente, estúpido, de caça, aos dezasseis anos, que lhe decepou a mão direita e os sonhos, ou porque simplesmente o eram; amizade sã, forte e incondicional, crente na querença de que uno pode ser uma duplicidade de ser. Feita a ressalva e retomando onde estávamos antes dela, o António chegou cansado do semestre de faculdade e da viagem, longuíssima à altura, entre Coimbra e Lagos. Lá pernoitou e no dia seguinte na camioneta da EVA rumou a Aljezur, onde previamente havia anunciado a chegada.
A égua e a burra como de costume lá estavam, mas desta vez acompanhadas pelo rendeiro, e aqui o que não era nada usual era a falta de presença do Manuel, que sempre aguardava ansioso a chegada do António, que abraçava efusivamente e de voz embargada e lágrima no olho, invariavelmente dizia: António meu filho como estás magrinho, vamos homem monta a égua que eu vou na burra; a égua era a besta de montar do meu avô que ele por estatuto cedia ao filho, deixando a burra teimosa e velhinha para sua montada. Um gesto de amizade e respeito profundo de um pai para com o um filho, pelo qual nutria um orgulho do tamanho do mundo.
Porém naquele dia as ordens eram outras. O rendeiro montou a égua, carregou a burra com as malas, e o António cumpriu a pé os sete quilómetros e tal de Aljezur ao Vale da Telha.
E assim teve que engolir o seu orgulho e acompanhar as béstias e o homem em plano de dissemelhante igualdade, talvez uma lição de humildade, quiçá?...
Chegado ao monte principal e morada dos donos da propriedade o António e sua irmã a Maria d’ Alva e do Manuel, bem como dos dois casais de rendeiros (o Vale da Telha era uma propriedade enorme constituída pelo monte principal o Vale da Telha, o monte do Barranco e o monte do Telheiro, eram aproximadamente 650 hectares), o António procurou de imediato o Manuel, as saudades eram muitas e o motivo do arrufo há muito havia morrido e o caminho a pé ensinou-lhe a lição ou o recado.
Ávido daquelas mãos rudes e dos braços fortes, apesar da fraca estatura do Manuel, o António vasculhou a casa sem nela sinal do seu objecto de desejo encontrar.
Correu à rua ou melhor ao terreiro em frente a casa, onde o Leandro, o rendeiro, estava a descarregar a burrita e de supetão quase gritou ao homem, Leandro onde está o Sr. meu pai? Respeitosamente o Leandro respondeu: menino Toninho o Sr. Manuel foi à Pipa e espera-o lá, a égua está aparelhada, vá lá menino vá, ande que se faz tarde.
E assim foi. O António montou a “bonita”, assim se chamava a égua (a burra era a “catita”) e foi a passo lesto por aquele “medo” (zona dunar com uma vegetação peculiar: urzes, medronheiros, zimbreiros, camarinheiras e um vasto leque de herbáceas e cardos rasteiras de que não sei o nome, excepto o chá do medo)    fora até à arriba onde se localizava a vereda de difícil acesso à praia. Chegado atou a “bonita” a um zambujeiro e desceu apressadamente à praia, onde viu o Manuel sentado, alcantilado, no pequeno promontório de acesso à Atalaia de Fora, pedra alagada onde tantas vezes tinham pescado e onde o desaguisado, seis meses atrás, irrompera.  
Estranhando a situação António refreou o seu entusiasmo, até que tinha que ser cuidadoso pois o acesso era difícil, mas ainda assim e de passo estugado dirigiu-se para o local onde seu pai permanecia sentado e aparentemente sereno. Chegado ao local cumprimentou: boa tarde Sr. meu pai. Boa tarde meu filho respondeu o Manuel. E, aí, o silêncio instalou-se. O mar foi batendo na rocha, o sol foi caindo no horizonte e os dois homens cumpriram a missão que lhes estava predestinada: fazer as pazes com o mundo que lhes abriu no coração a discórdia.
Ao cair da noite o Manuel levantou-se e disse, vamos homem, já é tarde e, olhando mais uma vez a imensidão e a solidão do mundo que os rodeava, esperou que o filho se levantasse e perguntou-lhe: e então filho onde está o meu abraço? Ali na solidão abraçaram-se e choraram pai e filho, pois o mundo era um e um só, um apenas eles.
Desceram, cuidadosamente, o pequeno promontório, onde se encontravam alcantilados, e algures no caminho, sobre os rebolos da praia, entre o pequeno promontório e a vereda recortada na arriba, o Manuel baixou-se e apanhou uma pedra, uma pedra como outra pedra qualquer, só que na realidade não era uma pedra qualquer, apesar da sua singularidade; maneira, quase esférica, basáltica, raiada com um meridiano em feldspato, proveniente dos rebolos da praia, e  pedindo a mão a seu filho lá, delicadamente, a pousou, esmagando-lhe depois, carinhosa e delicadamente, com os seus dedos, rudes, os dedos do seu filho, criando um fecho artificial, como que uma concha de um bivalve, uma ostra que no seu seio continha a preciosa ambicionada pérola, contra ela, como que um fechar de mão involuntário, e olhando-o nos olhos disse-lhe, filho quando não necessitares mais dela dá-a a alguém que ames e que dela precise.
Regressaram silenciosos os dois homens ao monte com a “bonita” pela arreata.
O meu pai guardou a pedra que o meu avô lhe deu. Guardou-a para mim!
Deu-ma, volvidos meses, após termos tido violentas divergências e trocado palavras menos próprias e tons de voz inadmissíveis; ambas da minha parte. Guardou-a e deu-ma da mesma forma que lhe tinha sido transmitida; pousou-a da mesma forma na minha mão e fechou a minha mão da maneira que seu pai lhe fechara a dele, e disse-me a mesma coisa que o seu pai lhe dissera antes.
Eu guardei-a, não faz muito tempo entreguei-a ao meu filho e pedi para que a guardasse cuidadosamente e procedesse da mesma forma.
O meu nome é António Manuel, carinhosamente os meus pais chamavam-me de Tó Mané, António do meu pai, Manuel do meu avô, o meu filho chama-se Pedro António, António do seu pai e do seu avô, Pedro da pedra que nos vem a unir há três gerações de homens primogénitos.
Hoje, já não sou nem detentor nem guardião da pedra, mas dar-ta-ia de boa vontade se estivesse em meu poder.
Esta pedra não é uma pedra qualquer. Representa um dos sete pecados capitais ou mortais o “ORGULHO” que nos impede de fazer tanta coisa… e que, por ele, tanta coisa perdemos ou abdicamos… abdicamos de pedir desculpa ou perdão, afinal sem sentido, convenhamos!
Estou chorando porque os estou lembrando, porque hoje é o dia da festinha de finalistas da escolinha, da minha filha Laura Solange; Laura da bisavó materna e Solange da avó paterna, duas grandes mulheres, duas mulheres de armas, porque hoje é o dia dos avós e finalmente porque, por grande pesar o meu, hoje não tenho comigo o grande mestre da minha estrutura, o meu pai, que Deus na sua eterna sabedoria levou; ele foi em paz, eu sei vi-o na sua ultima expressão, agora resta-me a mim viver em paz sem ele…
Só Deus e eu sabemos a falta que ele me faz…

tÓ mAnÉ  Style

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