Vou-vos contar
uma estória, uma estória daquelas que não são na realidade uma estória mas sim
uma história a sério, daquelas que não vêm nos livros de "histórias".
Era uma vez uma pedra, como outra pedra qualquer, só que na realidade não era uma pedra qualquer, apesar da sua singularidade; maneira, quase esférica, basáltica, raiada com um meridiano em feldspato, proveniente dos rebolos da praia da Pipa em Aljezur, localizada a noroeste da praia do Monte Clérigo.
Era uma vez uma pedra, como outra pedra qualquer, só que na realidade não era uma pedra qualquer, apesar da sua singularidade; maneira, quase esférica, basáltica, raiada com um meridiano em feldspato, proveniente dos rebolos da praia da Pipa em Aljezur, localizada a noroeste da praia do Monte Clérigo.
Um belo dia,
anos, que a minha memória não pode recordar por não haver ainda nascido, se
volveram sobre ele, o Manuel Vicente e o António Monteiro, pai e filho, foram
pescar à Pipa, e se travaram de razões por motivo de força menor ou por dá cá
aquela palha e ficaram de costas ou de feitios ou ainda de candeias às avessas,
deixando-se de falar por um longo período de tempo, o período de um longo
semestre de curso de Direito em Coimbra.
Findo o semestre
o António regressou ao Vale da Telha onde vivia com o seu pai, Manuel, devo aqui dizer ou abrir um
parêntesis que quer Manuel quer o António para além da relação paternal unia-os
uma relação de profunda amizade, talvez por falta de uma mulher e de uma mãe;
Maria José de sua Graça ou Marquinhas como era conhecida quer no Vale da Telha
quer em Aljezur, mulher de personalidade forte e duma generosidade e bonomia
sem limites, ou porque ambos eram pescadores e caçadores ou porque um era
agricultor e o outro almejara um dia sê-lo, mas um acidente, estúpido, de caça,
aos dezasseis anos, que lhe decepou a mão direita e os sonhos, ou porque
simplesmente o eram; amizade sã, forte e incondicional, crente na querença de
que uno pode ser uma duplicidade de ser. Feita a ressalva e retomando onde
estávamos antes dela, o António chegou cansado do semestre de faculdade e da
viagem, longuíssima à altura, entre Coimbra e Lagos. Lá pernoitou e no dia
seguinte na camioneta da EVA rumou a Aljezur, onde previamente havia anunciado
a chegada.
A égua e a burra como
de costume lá estavam, mas desta vez acompanhadas pelo rendeiro, e aqui o que
não era nada usual era a falta de presença do Manuel, que sempre aguardava
ansioso a chegada do António, que abraçava efusivamente e de voz embargada e
lágrima no olho, invariavelmente dizia: António meu filho como estás magrinho, vamos
homem monta a égua que eu vou na burra; a égua era a besta de montar do meu avô
que ele por estatuto cedia ao filho, deixando a burra teimosa e velhinha para
sua montada. Um gesto de amizade e respeito profundo de um pai para com o um filho,
pelo qual nutria um orgulho do tamanho do mundo.
Porém naquele dia
as ordens eram outras. O rendeiro montou a égua, carregou a burra com as malas,
e o António cumpriu a pé os sete quilómetros e tal de Aljezur ao Vale da Telha.
E assim teve que
engolir o seu orgulho e acompanhar as béstias e o homem em plano de
dissemelhante igualdade, talvez uma lição de humildade, quiçá?...
Chegado ao monte
principal e morada dos donos da propriedade o António e sua irmã a Maria d’
Alva e do Manuel, bem como dos dois casais de rendeiros (o Vale da Telha era
uma propriedade enorme constituída pelo monte principal o Vale da Telha, o
monte do Barranco e o monte do Telheiro, eram aproximadamente 650 hectares), o
António procurou de imediato o Manuel, as saudades eram muitas e o motivo do
arrufo há muito havia morrido e o caminho a pé ensinou-lhe a lição ou o recado.
Ávido daquelas
mãos rudes e dos braços fortes, apesar da fraca estatura do Manuel, o António
vasculhou a casa sem nela sinal do seu objecto de desejo encontrar.
Correu à rua ou
melhor ao terreiro em frente a casa, onde o Leandro, o rendeiro, estava a
descarregar a burrita e de supetão quase gritou ao homem, Leandro onde está o
Sr. meu pai? Respeitosamente o Leandro respondeu: menino Toninho o Sr. Manuel
foi à Pipa e espera-o lá, a égua está aparelhada, vá lá menino vá, ande que se
faz tarde.
E assim foi. O
António montou a “bonita”, assim se chamava a égua (a burra era a “catita”) e
foi a passo lesto por aquele “medo” (zona dunar com uma vegetação peculiar:
urzes, medronheiros, zimbreiros, camarinheiras e um vasto leque de herbáceas e
cardos rasteiras de que não sei o nome, excepto o chá do medo) fora
até à arriba onde se localizava a vereda de difícil acesso à praia. Chegado
atou a “bonita” a um zambujeiro e desceu apressadamente à praia, onde viu o
Manuel sentado, alcantilado, no pequeno promontório de acesso à Atalaia de
Fora, pedra alagada onde tantas vezes tinham pescado e onde o desaguisado, seis
meses atrás, irrompera.
Estranhando a
situação António refreou o seu entusiasmo, até que tinha que ser cuidadoso pois
o acesso era difícil, mas ainda assim e de passo estugado dirigiu-se para o
local onde seu pai permanecia sentado e aparentemente sereno. Chegado ao local
cumprimentou: boa tarde Sr. meu pai. Boa tarde meu filho respondeu o Manuel. E,
aí, o silêncio instalou-se. O mar foi batendo na rocha, o sol foi caindo no
horizonte e os dois homens cumpriram a missão que lhes estava predestinada:
fazer as pazes com o mundo que lhes abriu no coração a discórdia.
Ao cair da noite
o Manuel levantou-se e disse, vamos homem, já é tarde e, olhando mais uma vez a
imensidão e a solidão do mundo que os rodeava, esperou que o filho se
levantasse e perguntou-lhe: e então filho onde está o meu abraço? Ali na
solidão abraçaram-se e choraram pai e filho, pois o mundo era um e um só, um
apenas eles.
Desceram,
cuidadosamente, o pequeno promontório, onde se encontravam alcantilados, e
algures no caminho, sobre os rebolos da praia, entre o pequeno promontório e a
vereda recortada na arriba, o Manuel baixou-se e apanhou uma pedra, uma pedra
como outra pedra qualquer, só que na realidade não era uma pedra qualquer,
apesar da sua singularidade; maneira, quase esférica, basáltica, raiada com um
meridiano em feldspato, proveniente dos rebolos da praia, e pedindo a mão a seu filho lá, delicadamente, a
pousou, esmagando-lhe depois, carinhosa e delicadamente, com os seus dedos,
rudes, os dedos do seu filho, criando um fecho artificial, como que uma concha
de um bivalve, uma ostra que no seu seio continha a preciosa ambicionada
pérola, contra ela, como que um fechar de mão involuntário, e olhando-o nos
olhos disse-lhe, filho quando não necessitares mais dela dá-a a alguém que ames
e que dela precise.
Regressaram
silenciosos os dois homens ao monte com a “bonita” pela arreata.
O meu pai guardou
a pedra que o meu avô lhe deu. Guardou-a para mim!
Deu-ma, volvidos
meses, após termos tido violentas divergências e trocado palavras menos próprias
e tons de voz inadmissíveis; ambas da minha parte. Guardou-a e deu-ma da mesma
forma que lhe tinha sido transmitida; pousou-a da mesma forma na minha mão e
fechou a minha mão da maneira que seu pai lhe fechara a dele, e disse-me a
mesma coisa que o seu pai lhe dissera antes.
Eu guardei-a, não
faz muito tempo entreguei-a ao meu filho e pedi para que a guardasse
cuidadosamente e procedesse da mesma forma.
O meu nome é
António Manuel, carinhosamente os meus pais chamavam-me de Tó Mané, António do meu
pai, Manuel do meu avô, o meu filho chama-se Pedro António, António do seu pai
e do seu avô, Pedro da pedra que nos vem a unir há três gerações de homens
primogénitos.
Hoje, já não sou nem
detentor nem guardião da pedra, mas dar-ta-ia de boa vontade se estivesse em
meu poder.
Esta pedra não é
uma pedra qualquer. Representa um dos sete pecados capitais ou mortais o
“ORGULHO” que nos impede de fazer tanta coisa… e que, por ele, tanta coisa
perdemos ou abdicamos… abdicamos de pedir desculpa ou perdão, afinal sem
sentido, convenhamos!
Estou chorando
porque os estou lembrando, porque hoje é o dia da festinha de finalistas da
escolinha, da minha filha Laura Solange; Laura da bisavó materna e Solange da
avó paterna, duas grandes mulheres, duas mulheres de armas, porque hoje é o dia
dos avós e finalmente porque, por grande pesar o meu, hoje não tenho comigo o
grande mestre da minha estrutura, o meu pai, que Deus na sua eterna sabedoria
levou; ele foi em paz, eu sei vi-o na sua ultima expressão, agora resta-me a
mim viver em paz sem ele…
Só Deus e eu
sabemos a falta que ele me faz…
tÓ mAnÉ Style
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