Era uma vez...
Uma menina que
não queria ser capa de revista nem manequim de passarela, todavia tinha tudo
para o ser… Um dia resolveu vestir o seu semblante a rigor e na sua singeleza
sútil e sedutora, envolta num mistério de exuberância e escondida atrás de um
olhar meigo, gentil e brincalhão, vestiu a sua farda de infante, e num rasgo de
névoa, como soprado por vento levante, abriu-se da bruma que no seu entorno
nasceu; floriu, desabrochou e vermelha ainda das primeiras vergonhas pueris,
voou ao mundo, entregando, linda, o seu encanto, rodeado de um esplendor
sublime, que de sus, cativou...
Chamava-se
Sevetla e assim se há-de chamar, assim o espero. Nasceu e cresceu numa modesta
capital europeia.
Sevetla é
proveniente de uma família modesta mas honrada. Seu pai era empregado de
balcão, hoje reformado, e a sua mãe vendia o suor de cada dia, à hora, em casas
das senhoras privilegiadas, que lhe podiam requisitar e pagar os serviços, hoje
velhinha e gasta, e tal como o seu marido reformada.
Sevetla nasceu
serôdia, já seus pais iam entrados na idade mais que madura, e inesperada,
caprichos da natureza. Todavia encheu uma casa vazia de esperança num turbilhão
de emoções desmedidamente fortes e amores retraídos por retardados e escondidos
por esquecidos. Com Sevetla regressou uma crescente vontade de dar largas à
vida e de amar incondicionalmente a petiz.
Sevetla tinha um
irmão, o Igor, já na idade da razão, bastante mais velho, entre eles viviam
duas gerações, duas contradições e um afastamento inopinado, pois este, sempre
que lhe foi possível ou a oportunidade se lhe apresentava, demonstrou o seu
desagrado e desagravo relativamente ao nascimento da sua irmã caçula ou da
pequena Sevetla. Facto que ganhou uma maior relevância, dimensão e requinte,
aquando do seu enlace matrimonial, acicatado pela, agora, sua esposa – sempre a
velha rivalidade entre mulheres -, face ao estatuto que o contrato lhe
conferiu, Igor desproporcionou e extremou a sua já doída dor de cotovelo, adicionando-lhe
um vigor renovado, raiando mesmo o seu desprezo o limite do inusitado, e
desconforme com os sentimentos de Sevetla que respeitava e amava o irmão desde
que foi atirada no mundo, afinal era o seu “mano velho”. Inobstante, o seu coração, esse, ter ficado a
morar no coração de seu primo Sergei de sua graça. Que por ironia do destino
Deus, na Sua sábia, todavia muitas vezes incompreensível, que o diga Sevetla,
misericórdia, lhe o usurpou cedo, na primavera da vida, vítima de um estúpido
acidente de motocicleta, retirando-lhe copiosas lágrimas de alma e
induzindo-lhe, para todo o sempre, uma dor sem dimensão nem tempo;
incomensurável.
Quis Deus, na sua
infinita sabedoria, também dar-lhe um filho e um marido ou melhor um pai do
filho – que nunca o foi – e um companheiro que não faz nem tem a menor das
intenções de a acompanhar, quer nas suas ansiedades e medos quer nos seus
devaneios e sonhos.
Assim, Sevetla,
após a morte dos pais, vê-se, repentinamente, só no mundo e num mundo só que
gira em torno das suas incertezas e desconfianças.
Assolou-a a fome
também. Fome de amor, carinho e compreensão, fome de quem nada tem que comer,
fome de quem não tem por quem bem-querer, excepto por Nicolay, que lhe rasgou
as entranhas, é filho seu, pariu-o! E a ele se dedica em exclusividade de amor,
carinho e compreensão.
Deu-lhe Deus,
ainda, um querer e uma vontade de ferro, aliada a uma argúcia e uma
inteligência excepcional, que foram inseridas num invólucro invulgar e de todo
invejável; o corpo, a fauces, o porte, a postura e o sorriso de uma Top Model.
Predicados dos quais a Sevetla não estava de todo preparada nem ciente, apesar
de nela se ir aos poucos desenvolvendo e despertando uma consciência de si,
manifestada através de um incremento, que se vem a agigantar e a arreigar, de
segurança em si e de si.
Contudo Sevetla,
escondida na biblioteca onde trabalhava e ainda trabalha assim o espero, estava
longe de se julgar capacitada ou sequer ousar sonhar em um dia vir a ser uma
Top Model, apesar de não poder deixar de reparar que os olhos, plenos de
lubricidade, dos rapazolas e dos homens se pousavam, demoradamente, em si
evidenciando um notório ar de lascívia e cobiça impudica. Sevetla sentia-se
como que despida e acariciada por aqueles olhares concupiscentes que, curiosamente,
não lhe desagradavam, antes pelo contrário, faziam-lhe crescer no corpo um
calor em forma de desejo, provocando-lhe uma sensação licenciosamente agradável
de impudicícia, causando-lhe tremuras nas pernas e uma vontade terrível de
apertar as coxas contra o sexo que lhe ficava perlado de desejos irreprimíveis
e, que, algumas vezes, inadvertidamente, até lhe passava, delicadamente, a mão
numa carícia furtiva, todavia irrefreável, perdendo por instantes breves, mas
como duma infinidade intemporal se tratasse, ou de uma forma abstrusa de
transe, a noção da realidade. Por momentos Sevetla entrava num espaço meramente
abstracto, indecifrável, em que a relevância do ser era engolida pela
voracidade indómita do prazer não atingindo no entanto o paroxismo. Porém, tal
como voara para o outro lado da realidade assim voltava à sua condição de
urbanidade singela e de mulher respeitável, tão volátil e precário era o
intervalo de tempo entre o almejar e o querer, assim ela se revelava.
Dias havia que
ungida, animada e inebriada por esta nova e desconcertante descoberta, que de
tão óbvia, se perdeu no templo do conhecimento, revivia, aquele instante, e aí,
ressumava-lhe na pele um aljôfar, húmido, escoltado de um espasmo latejante que
lhe retesava os seus mais íntimos músculos e, enrubescia de afecto e de
espanto, pela desenfreada e inopinada sensação de deleite que atingia,
desfalecia, em sonhos sobre o negro balcão, enlaçada num livro que por ali se
perdera, como se na aba, macia, da cama, deitada estivesse, abraçando o ursinho
que, desde sempre, a guardava dos medos de criança.
Sevetla, em tempo
algum, ousou fantasiar que tanto assim o desejasse! E, muito menos que,
intrepidamente, o revelasse ao espelho e ao obturador da objectiva fotográfica,
manuseada por mão própria, que, com o passar do tempo, lhe ia acendendo
deslumbres e desejos frementes, que o seu corpo, por vontade própria, ia
acalentando, soltando-a de probos e velhos preconceitos, permitindo-lhe, assim,
dar largas ao sabor dos seus mais recônditos e insondáveis anseios, que tão
acesos ardores imanavam. Anseios, enclausurados, resguardados, que pululando, o
seu mais íntimo ser, não morreram por desleixo ou ignorância de existência, mas
sim, encontravam-se latentes, esquecidos, aguardando, perseverantemente, a
altura certa para desabrocharem, para se revelarem e audazes se rebelarem,
vigorosamente, em todo o seu esplendor.
Todavia, Sevetla,
tímida e envergonhada, não queria sequer pensar nisso, não se afoitava, para
ser mais explícito, apesar das amplas reportagens fotográficas, que, só, no seu
recato e no seu sacro santo quarto, a si própria presentear. Munida do
telemóvel, Samsung GT-S5660 Android, ou da câmara fotográfica, Fujifilm S1800,
usando o módulo automático de disparo retardado ou simplesmente o truque do
braço esticado, e bimba, zás, já está. Depois, extremosamente, escolhia as
eleitas, as preferidas, dessas, numa segunda análise, retirava as que
considerava raiarem o indecoroso ou aquelas que, já libidinosa, haviam excedido
os rigores das tempestades do espírito e do corpo. Estas guardava-as, recatada
e silenciosamente, para si num álbum que intitulara de “Limbo Erógeno”, num
eufemismo de: Quase pornográfico, ou como, também, lhe gostava de chamar: Arte
Na Sua Génesis Primeva. As outras, após passarem os crivos referidos, ainda
eram sujeitas a uma última análise, escrupulosa no rigor e no detalhe, nada lhe
escapava, tinham que estar perfeitas. Dessas, então, saiam as que tornava
públicas, fazendo delas gáudio, exibindo-as aos amigos e difundindo-as, nesse
palco imenso, que é o mundo das redes sociais, onde viaja incógnita sob o nick name: the red girl.
E, assim, nasceu
o mito da menina que não queria ser Tope Model.
Das bocas
foleiras, ao top do ordinário, às meras opiniões de quem não sabe como dizer
nem como o fazer, das invejas do mulherio, das assisadas, às desviadas, de tudo
alfim, ouviu, leu e conheceu esta menina que afinal já é mulher, e, sem perder
o norte e o tino, o seu périplo fotográfico, na primeira pessoa, continuou,
pois os cães ladravam e a caravana passava. Fez ouvidos moucos a palavras de
loiça e à laia de ardoiça, capturou, cativou e, assim, um grupo de fãs, de
seguidores atentos, foi criando em redor desta personagem mística e mítica, que
lhe ajudavam a preencher um ego vazio e desprendido que sorvia como uma esponja
seca o néctar meloso ou acintoso das palavras ditas e escritas, derramando-as
em cálice de morno muco, originando uma nova e fogosa aventura fotográfica.
Desta forma, paulatinamente, comentário após comentário sessão após sessão
fotográfica, foi enchendo a sua mente e criando o seu conceito de arte, o mais
nobre: A arte de SER arte.
Todavia nem tudo
foi assim tão certo tão linear, dúvidas e mais dúvidas pairaram, como nuvens
negras no céu, criando tempestades de alma e dilúvios de incertezas morais,
emanando raios que rasgaram autênticas crateras no chão do seu corpo, carnais
devaneios levantaram-se como vendavais, por fim a tempestade amainou, e, corpo
e espírito desfragmentaram-se de um uno inicial disforme e a clarividência
surgiu aquando da separação do corpóreo do imaterial e ascendeu aos píncaros,
impune e imune a tudo e a todos, Sevetla, finalmente criara o seu EU.
Esta diáspora tem
uma história que vos quero contar. Era uma vez…
Um impasse, um
impasse entre o renascer de vontades e as quebras pueris de deslumbramentos
inerentes a sonhos inefáveis aliados a uma personalidade desordenada, donde
nasciam e feneciam perfis na Netlog,
conforme a sua conveniência e os ataques ferozes de que eram omnimodamente
vitimados por uma oligopsiquia atroz. Todos eles exuberantes, sensuais e
descabidamente naïfes, contudo sem ferirem o fio
condutor que a todos une: o seu cariz próprio e muito singular – explodindo
virtudes e emanando uma assunção e presunção de arte.
De facto Sevetla
não intenta exibir-se, antes pelo contrário, o que ela verdadeiramente ama é a
arte e para ela o corpo é arte na sua expressão mais primeva, todavia necessita
desesperadamente de mais ou melhor o seu ego exige-lhe mais, e o permanecer
anónima no bolor bafiento de uma biblioteca universitária, não se coadunava com
os seus anseios, não era propriamente o sonho seu, mas como fugir, como
contornar? Como chamar a atenção do mundo para o seu mundo? Como soltar uma
alma presa a um sonho? Como projectar esse sonho num mundo hermético à sua
realidade comezinha, ao seu ínfimo reduto? Como a libertar?...
Sendo que as
cadeias inerentes à vida a obrigam a uma condição inóspita que lhe cativa,
agrilhoa o corpo e que a alma não aceita, não tolera e, onde remanesce intacto
e eternamente livre o sonho. Sonho que acalenta de tenra idade mas que
hibernou, permaneceu latente, porém agora que desperto, não lhe pode mais
ignorar a existência. Sonho que a consome dia após dia como uma peçonha
hedionda, que verduga, lhe preenche as horas, acendendo-lhe desejos, ausentes
de face, num corpo delirante que explode no calor das noites insones e atirado
ao prazer desenfreado da antecipação que compensa o sofrimento por antecipação
e, assim, esvaída de si e em torvelinho desprende-se nas mãos libidinosas do
sono num: até amanhã sonhos.
Sevetla sonha
entregar e sujeitar o seu corpo à arte de fazer arte, todavia não sonha ser Top
Model. Para Sevetla a arte é insinuante, é sensual mas é pura também, e, soleva
corpo e alma; arte é beleza estática ou em movimento, está para além do corpo e
roça os píncaros mais grandiosos de um estado de alma que atingiu a
luminosidade radiosa, o esplendor que apenas existe num limbo, num entre Ser e
o ser Deus, é divina e resume em quatro letras a sublimidade do SER. Assim,
quem a ela se dedica na sua plenitude faz parte de uma franja de seres
semi-divinais que não vivem entre os Homens mas num Éden diáfano que se
encontra ligado à Terra por um campo electromagnético de atracção criado pelo
fulgor, pela perspicuidade das mentes, tal como um satélite, só que não é
dotado órbita fixa, vagueia perdido pelo espaço, e tem uma dimensão intangível.
Por outro lado a vida de Tope Model é algo corpóreo, palpável, infame onde
impera a promiscuidade, a permissividade, a arbitrariedade de critério, e onde
sobrevive um submundo de podridão de carácter e imoralidade, é algo abjecto,
uma aberração da natureza, uma troca continua de serviços, de favores
inconfessáveis, abominável, a face oculta do mal.
Sevetla croiu uma
perspectiva muito singular muito própria entre estes dois mundos; onde um fio
ténue separa a arte da exibição crua e discricionária do corpo, para ela
completamente divergentes: A arte eleva e a exibição, remunerada, do corpo
degrada a condição de ser humano. Um quase diálogo, prenhe de concupiscência,
entre a deidade e a meretrícia.
Esta concepção,
esta convicção, granjeava-lhe alguns amigos entre o público masculino, mas
outras audiências, aquelas que não lhe entendiam os desígnios ou os consideravam
um atentado à moral vigente ou ao seu pseudo pudor, ou ainda àqueles que, de
pendor lascivo, lhe procuravam cativar os favores e eram dócil e liminarmente,
todavia com classe e veemência, repelidos, recusados, por repúdio e nojo,
depois de se exporem com indecorosos e insidiosos comentários ou consoante a
gravidade do seu entendimento, atirados, entregues na lista negra,
impiedosamente, e, às vezes pelo simples facto de, com boas intenções e delas
está o inferno cheio, lhe demonstrarem algo mais, um genuíno afecto ou um
afecto mais efectivo, era a carapaça emocional a escudá-la de si, do mundo, que
a compelia à rejeição, crua e nua, irracional por vezes, contudo sem maldade.
Atávica. Consequente das rejeições que lhe macularam a vida, pelas incompreensões,
as sujeições, mas inocente também.
Sevetla na sua
maldade era, inocente, no julgar; num prato colocava as injustiças impostas
pela vida no outro o alvedrio do seu pressentimento, e assim, funcionava, à sua
maneira, o fiel da balança por ela construída para protecção, para defesa, do
mundo hostil, áspero, que em seu entorno vogava, insinuante, roçando-lhe, sem
cerimónias, a sua pele macia, carcomendo-a aqui e ali, abocanhando-a,
sacudindo-a e finalmente arremessando-a na sarjeta, numa noite fria da sua
indómita existência, à qual ela resistia intrepidamente, cuspindo na infâmia,
em cada letra, insinuantemente latente.
A salvaguarda do
conceito é a intermitência, a subsistência do ser. Verdade pia para Sevetla.
Assim, e no meio
desta balbúrdia, neste ruído de fundo Sevetla navegava, navegava de rumo
perdido, incerto, ao sabor do seu discernimento, da sua objectividade toldada
por um absurdo e abjecto prenúncio de rejeição incontida, mal resolvida,
inconsútil na sua abstrusa concepção; imposição do ser a si, molde deformado de
uma existência conturbada, periclitante e de um trajecto de vida titubeante,
cumprido em si e para si, porém só, comprimido num mundo, iníquo, que desejava
expansível e equânime.
A lógica para
Sevetla era uma batata de pele macia mas muito irregular e disforme. Conceito
que aplicou, solenemente, à sua relação, conflituosa, com o mundo, um mundo que
não nasceu para ela nem tão pouco ela para ele, regulando as suas atitudes, tal
e qual uma correctora de mercados financeiros avalia uma empresa, um grupo, uma
holding ou um Estado, isto é, sem
critério óbvio, mas objectivamente, baseado em previsões aleatórias de mercado,
em enquadramentos semi-obscuros de semi-obscuras influências. Sevetla era uma
ilha deserta, virgem, rodeada de recifes de coral e uma ondulação traiçoeira,
onde apenas existia uma entrada que simultaneamente era também a saída, porém
tão inóspita que nunca ninguém logrou lá passar. A barreira de coral que a
defende, é mais um cemitério de navios e almas naufragadas; uma necrópole
singular, onde jazem no mesmo chão sagrado os sentimentos e os ressentimentos.
Mundanidades.
E, nesta agonia
constante, lobrigou ao fundo do túnel a luz, a essência, explodiu
desfragmentou-se em duas partes únicas e dissemelhantes: Corpo e Alma.
Hoje, os anos
crestam-lhe a imagem da mulher que já foi, contudo, liberta da prisão do
passado e vogando só no tempo, numa cadência insólita de tempo, Sevetla,
continua vogando pelas redes sociais, presa a um sonho que nunca logrou
alcançar e a uma juventude que há muito de si emigrou.
Todavia o seu sonho impera, é muito mais
profundo que o poço que, só, cavou e onde, só, se refugiou, prevalece intacto
no tempo que, para ela nunca passou.
tÓ mAnÉ Style
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