sexta-feira, 12 de julho de 2013

A menina que não queria ser Top Model



Era uma vez...
Uma menina que não queria ser capa de revista nem manequim de passarela, todavia tinha tudo para o ser… Um dia resolveu vestir o seu semblante a rigor e na sua singeleza sútil e sedutora, envolta num mistério de exuberância e escondida atrás de um olhar meigo, gentil e brincalhão, vestiu a sua farda de infante, e num rasgo de névoa, como soprado por vento levante, abriu-se da bruma que no seu entorno nasceu; floriu, desabrochou e vermelha ainda das primeiras vergonhas pueris, voou ao mundo, entregando, linda, o seu encanto, rodeado de um esplendor sublime, que de sus, cativou...
Chamava-se Sevetla e assim se há-de chamar, assim o espero. Nasceu e cresceu numa modesta capital europeia.
Sevetla é proveniente de uma família modesta mas honrada. Seu pai era empregado de balcão, hoje reformado, e a sua mãe vendia o suor de cada dia, à hora, em casas das senhoras privilegiadas, que lhe podiam requisitar e pagar os serviços, hoje velhinha e gasta, e tal como o seu marido reformada.
Sevetla nasceu serôdia, já seus pais iam entrados na idade mais que madura, e inesperada, caprichos da natureza. Todavia encheu uma casa vazia de esperança num turbilhão de emoções desmedidamente fortes e amores retraídos por retardados e escondidos por esquecidos. Com Sevetla regressou uma crescente vontade de dar largas à vida e de amar incondicionalmente a petiz.
Sevetla tinha um irmão, o Igor, já na idade da razão, bastante mais velho, entre eles viviam duas gerações, duas contradições e um afastamento inopinado, pois este, sempre que lhe foi possível ou a oportunidade se lhe apresentava, demonstrou o seu desagrado e desagravo relativamente ao nascimento da sua irmã caçula ou da pequena Sevetla. Facto que ganhou uma maior relevância, dimensão e requinte, aquando do seu enlace matrimonial, acicatado pela, agora, sua esposa – sempre a velha rivalidade entre mulheres -, face ao estatuto que o contrato lhe conferiu, Igor desproporcionou e extremou a sua já doída dor de cotovelo, adicionando-lhe um vigor renovado, raiando mesmo o seu desprezo o limite do inusitado, e desconforme com os sentimentos de Sevetla que respeitava e amava o irmão desde que foi atirada no mundo, afinal era o seu “mano velho”.  Inobstante, o seu coração, esse, ter ficado a morar no coração de seu primo Sergei de sua graça. Que por ironia do destino Deus, na Sua sábia, todavia muitas vezes incompreensível, que o diga Sevetla, misericórdia, lhe o usurpou cedo, na primavera da vida, vítima de um estúpido acidente de motocicleta, retirando-lhe copiosas lágrimas de alma e induzindo-lhe, para todo o sempre, uma dor sem dimensão nem tempo; incomensurável.  
Quis Deus, na sua infinita sabedoria, também dar-lhe um filho e um marido ou melhor um pai do filho – que nunca o foi – e um companheiro que não faz nem tem a menor das intenções de a acompanhar, quer nas suas ansiedades e medos quer nos seus devaneios e sonhos.
Assim, Sevetla, após a morte dos pais, vê-se, repentinamente, só no mundo e num mundo só que gira em torno das suas incertezas e desconfianças.
Assolou-a a fome também. Fome de amor, carinho e compreensão, fome de quem nada tem que comer, fome de quem não tem por quem bem-querer, excepto por Nicolay, que lhe rasgou as entranhas, é filho seu, pariu-o! E a ele se dedica em exclusividade de amor, carinho e compreensão.
Deu-lhe Deus, ainda, um querer e uma vontade de ferro, aliada a uma argúcia e uma inteligência excepcional, que foram inseridas num invólucro invulgar e de todo invejável; o corpo, a fauces, o porte, a postura e o sorriso de uma Top Model. Predicados dos quais a Sevetla não estava de todo preparada nem ciente, apesar de nela se ir aos poucos desenvolvendo e despertando uma consciência de si, manifestada através de um incremento, que se vem a agigantar e a arreigar, de segurança em si e de si. 
Contudo Sevetla, escondida na biblioteca onde trabalhava e ainda trabalha assim o espero, estava longe de se julgar capacitada ou sequer ousar sonhar em um dia vir a ser uma Top Model, apesar de não poder deixar de reparar que os olhos, plenos de lubricidade, dos rapazolas e dos homens se pousavam, demoradamente, em si evidenciando um notório ar de lascívia e cobiça impudica. Sevetla sentia-se como que despida e acariciada por aqueles olhares concupiscentes que, curiosamente, não lhe desagradavam, antes pelo contrário, faziam-lhe crescer no corpo um calor em forma de desejo, provocando-lhe uma sensação licenciosamente agradável de impudicícia, causando-lhe tremuras nas pernas e uma vontade terrível de apertar as coxas contra o sexo que lhe ficava perlado de desejos irreprimíveis e, que, algumas vezes, inadvertidamente, até lhe passava, delicadamente, a mão numa carícia furtiva, todavia irrefreável, perdendo por instantes breves, mas como duma infinidade intemporal se tratasse, ou de uma forma abstrusa de transe, a noção da realidade. Por momentos Sevetla entrava num espaço meramente abstracto, indecifrável, em que a relevância do ser era engolida pela voracidade indómita do prazer não atingindo no entanto o paroxismo. Porém, tal como voara para o outro lado da realidade assim voltava à sua condição de urbanidade singela e de mulher respeitável, tão volátil e precário era o intervalo de tempo entre o almejar e o querer, assim ela se revelava.
Dias havia que ungida, animada e inebriada por esta nova e desconcertante descoberta, que de tão óbvia, se perdeu no templo do conhecimento, revivia, aquele instante, e aí, ressumava-lhe na pele um aljôfar, húmido, escoltado de um espasmo latejante que lhe retesava os seus mais íntimos músculos e, enrubescia de afecto e de espanto, pela desenfreada e inopinada sensação de deleite que atingia, desfalecia, em sonhos sobre o negro balcão, enlaçada num livro que por ali se perdera, como se na aba, macia, da cama, deitada estivesse, abraçando o ursinho que, desde sempre, a guardava dos medos de criança.
Sevetla, em tempo algum, ousou fantasiar que tanto assim o desejasse! E, muito menos que, intrepidamente, o revelasse ao espelho e ao obturador da objectiva fotográfica, manuseada por mão própria, que, com o passar do tempo, lhe ia acendendo deslumbres e desejos frementes, que o seu corpo, por vontade própria, ia acalentando, soltando-a de probos e velhos preconceitos, permitindo-lhe, assim, dar largas ao sabor dos seus mais recônditos e insondáveis anseios, que tão acesos ardores imanavam. Anseios, enclausurados, resguardados, que pululando, o seu mais íntimo ser, não morreram por desleixo ou ignorância de existência, mas sim, encontravam-se latentes, esquecidos, aguardando, perseverantemente, a altura certa para desabrocharem, para se revelarem e audazes se rebelarem, vigorosamente, em todo o seu esplendor.
Todavia, Sevetla, tímida e envergonhada, não queria sequer pensar nisso, não se afoitava, para ser mais explícito, apesar das amplas reportagens fotográficas, que, só, no seu recato e no seu sacro santo quarto, a si própria presentear. Munida do telemóvel, Samsung GT-S5660 Android, ou da câmara fotográfica, Fujifilm S1800, usando o módulo automático de disparo retardado ou simplesmente o truque do braço esticado, e bimba, zás, já está. Depois, extremosamente, escolhia as eleitas, as preferidas, dessas, numa segunda análise, retirava as que considerava raiarem o indecoroso ou aquelas que, já libidinosa, haviam excedido os rigores das tempestades do espírito e do corpo. Estas guardava-as, recatada e silenciosamente, para si num álbum que intitulara de “Limbo Erógeno”, num eufemismo de: Quase pornográfico, ou como, também, lhe gostava de chamar: Arte Na Sua Génesis Primeva. As outras, após passarem os crivos referidos, ainda eram sujeitas a uma última análise, escrupulosa no rigor e no detalhe, nada lhe escapava, tinham que estar perfeitas. Dessas, então, saiam as que tornava públicas, fazendo delas gáudio, exibindo-as aos amigos e difundindo-as, nesse palco imenso, que é o mundo das redes sociais, onde viaja incógnita sob o nick name: the red girl.
E, assim, nasceu o mito da menina que não queria ser Tope Model.
Das bocas foleiras, ao top do ordinário, às meras opiniões de quem não sabe como dizer nem como o fazer, das invejas do mulherio, das assisadas, às desviadas, de tudo alfim, ouviu, leu e conheceu esta menina que afinal já é mulher, e, sem perder o norte e o tino, o seu périplo fotográfico, na primeira pessoa, continuou, pois os cães ladravam e a caravana passava. Fez ouvidos moucos a palavras de loiça e à laia de ardoiça, capturou, cativou e, assim, um grupo de fãs, de seguidores atentos, foi criando em redor desta personagem mística e mítica, que lhe ajudavam a preencher um ego vazio e desprendido que sorvia como uma esponja seca o néctar meloso ou acintoso das palavras ditas e escritas, derramando-as em cálice de morno muco, originando uma nova e fogosa aventura fotográfica. Desta forma, paulatinamente, comentário após comentário sessão após sessão fotográfica, foi enchendo a sua mente e criando o seu conceito de arte, o mais nobre: A arte de SER arte.
Todavia nem tudo foi assim tão certo tão linear, dúvidas e mais dúvidas pairaram, como nuvens negras no céu, criando tempestades de alma e dilúvios de incertezas morais, emanando raios que rasgaram autênticas crateras no chão do seu corpo, carnais devaneios levantaram-se como vendavais, por fim a tempestade amainou, e, corpo e espírito desfragmentaram-se de um uno inicial disforme e a clarividência surgiu aquando da separação do corpóreo do imaterial e ascendeu aos píncaros, impune e imune a tudo e a todos, Sevetla, finalmente criara o seu EU.   
Esta diáspora tem uma história que vos quero contar. Era uma vez…
Um impasse, um impasse entre o renascer de vontades e as quebras pueris de deslumbramentos inerentes a sonhos inefáveis aliados a uma personalidade desordenada, donde nasciam e feneciam perfis na Netlog, conforme a sua conveniência e os ataques ferozes de que eram omnimodamente vitimados por uma oligopsiquia atroz. Todos eles exuberantes, sensuais e descabidamente naïfes, contudo sem ferirem o fio condutor que a todos une: o seu cariz próprio e muito singular – explodindo virtudes e emanando uma assunção e presunção de arte. 
De facto Sevetla não intenta exibir-se, antes pelo contrário, o que ela verdadeiramente ama é a arte e para ela o corpo é arte na sua expressão mais primeva, todavia necessita desesperadamente de mais ou melhor o seu ego exige-lhe mais, e o permanecer anónima no bolor bafiento de uma biblioteca universitária, não se coadunava com os seus anseios, não era propriamente o sonho seu, mas como fugir, como contornar? Como chamar a atenção do mundo para o seu mundo? Como soltar uma alma presa a um sonho? Como projectar esse sonho num mundo hermético à sua realidade comezinha, ao seu ínfimo reduto? Como a libertar?...
Sendo que as cadeias inerentes à vida a obrigam a uma condição inóspita que lhe cativa, agrilhoa o corpo e que a alma não aceita, não tolera e, onde remanesce intacto e eternamente livre o sonho. Sonho que acalenta de tenra idade mas que hibernou, permaneceu latente, porém agora que desperto, não lhe pode mais ignorar a existência. Sonho que a consome dia após dia como uma peçonha hedionda, que verduga, lhe preenche as horas, acendendo-lhe desejos, ausentes de face, num corpo delirante que explode no calor das noites insones e atirado ao prazer desenfreado da antecipação que compensa o sofrimento por antecipação e, assim, esvaída de si e em torvelinho desprende-se nas mãos libidinosas do sono num: até amanhã sonhos.
Sevetla sonha entregar e sujeitar o seu corpo à arte de fazer arte, todavia não sonha ser Top Model. Para Sevetla a arte é insinuante, é sensual mas é pura também, e, soleva corpo e alma; arte é beleza estática ou em movimento, está para além do corpo e roça os píncaros mais grandiosos de um estado de alma que atingiu a luminosidade radiosa, o esplendor que apenas existe num limbo, num entre Ser e o ser Deus, é divina e resume em quatro letras a sublimidade do SER. Assim, quem a ela se dedica na sua plenitude faz parte de uma franja de seres semi-divinais que não vivem entre os Homens mas num Éden diáfano que se encontra ligado à Terra por um campo electromagnético de atracção criado pelo fulgor, pela perspicuidade das mentes, tal como um satélite, só que não é dotado órbita fixa, vagueia perdido pelo espaço, e tem uma dimensão intangível. Por outro lado a vida de Tope Model é algo corpóreo, palpável, infame onde impera a promiscuidade, a permissividade, a arbitrariedade de critério, e onde sobrevive um submundo de podridão de carácter e imoralidade, é algo abjecto, uma aberração da natureza, uma troca continua de serviços, de favores inconfessáveis, abominável, a face oculta do mal.              
Sevetla croiu uma perspectiva muito singular muito própria entre estes dois mundos; onde um fio ténue separa a arte da exibição crua e discricionária do corpo, para ela completamente divergentes: A arte eleva e a exibição, remunerada, do corpo degrada a condição de ser humano. Um quase diálogo, prenhe de concupiscência, entre a deidade e a meretrícia.
Esta concepção, esta convicção, granjeava-lhe alguns amigos entre o público masculino, mas outras audiências, aquelas que não lhe entendiam os desígnios ou os consideravam um atentado à moral vigente ou ao seu pseudo pudor, ou ainda àqueles que, de pendor lascivo, lhe procuravam cativar os favores e eram dócil e liminarmente, todavia com classe e veemência, repelidos, recusados, por repúdio e nojo, depois de se exporem com indecorosos e insidiosos comentários ou consoante a gravidade do seu entendimento, atirados, entregues na lista negra, impiedosamente, e, às vezes pelo simples facto de, com boas intenções e delas está o inferno cheio, lhe demonstrarem algo mais, um genuíno afecto ou um afecto mais efectivo, era a carapaça emocional a escudá-la de si, do mundo, que a compelia à rejeição, crua e nua, irracional por vezes, contudo sem maldade. Atávica. Consequente das rejeições que lhe macularam a vida, pelas incompreensões, as sujeições, mas inocente também.
Sevetla na sua maldade era, inocente, no julgar; num prato colocava as injustiças impostas pela vida no outro o alvedrio do seu pressentimento, e assim, funcionava, à sua maneira, o fiel da balança por ela construída para protecção, para defesa, do mundo hostil, áspero, que em seu entorno vogava, insinuante, roçando-lhe, sem cerimónias, a sua pele macia, carcomendo-a aqui e ali, abocanhando-a, sacudindo-a e finalmente arremessando-a na sarjeta, numa noite fria da sua indómita existência, à qual ela resistia intrepidamente, cuspindo na infâmia, em cada letra, insinuantemente latente.         
A salvaguarda do conceito é a intermitência, a subsistência do ser. Verdade pia para Sevetla.
Assim, e no meio desta balbúrdia, neste ruído de fundo Sevetla navegava, navegava de rumo perdido, incerto, ao sabor do seu discernimento, da sua objectividade toldada por um absurdo e abjecto prenúncio de rejeição incontida, mal resolvida, inconsútil na sua abstrusa concepção; imposição do ser a si, molde deformado de uma existência conturbada, periclitante e de um trajecto de vida titubeante, cumprido em si e para si, porém só, comprimido num mundo, iníquo, que desejava expansível e equânime.
A lógica para Sevetla era uma batata de pele macia mas muito irregular e disforme. Conceito que aplicou, solenemente, à sua relação, conflituosa, com o mundo, um mundo que não nasceu para ela nem tão pouco ela para ele, regulando as suas atitudes, tal e qual uma correctora de mercados financeiros avalia uma empresa, um grupo, uma holding ou um Estado, isto é, sem critério óbvio, mas objectivamente, baseado em previsões aleatórias de mercado, em enquadramentos semi-obscuros de semi-obscuras influências. Sevetla era uma ilha deserta, virgem, rodeada de recifes de coral e uma ondulação traiçoeira, onde apenas existia uma entrada que simultaneamente era também a saída, porém tão inóspita que nunca ninguém logrou lá passar. A barreira de coral que a defende, é mais um cemitério de navios e almas naufragadas; uma necrópole singular, onde jazem no mesmo chão sagrado os sentimentos e os ressentimentos. Mundanidades.
E, nesta agonia constante, lobrigou ao fundo do túnel a luz, a essência, explodiu desfragmentou-se em duas partes únicas e dissemelhantes: Corpo e Alma.   
Hoje, os anos crestam-lhe a imagem da mulher que já foi, contudo, liberta da prisão do passado e vogando só no tempo, numa cadência insólita de tempo, Sevetla, continua vogando pelas redes sociais, presa a um sonho que nunca logrou alcançar e a uma juventude que há muito de si emigrou.
Todavia o seu sonho impera, é muito mais profundo que o poço que, só, cavou e onde, só, se refugiou, prevalece intacto no tempo que, para ela nunca passou.


tÓ mAnÉ   Style

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