sexta-feira, 12 de julho de 2013

A praça que é largo - Continuação



Quando me levantei da cadeira em simultâneo empurrei ou arrastei levemente a mesa para a frente libertando uma frincha para deixar passar o meu corpo, magro, e entregar-me, lânguido e indolente, ao sol, àquela hora inclemente, que abrasava o solitário e imperioso largo. Em passo lento e sem vontade parti no meu intento: chegar a horas ao trabalho que faço sem vontade ou de má vontade quase sempre.
Devolvi o olhar ao olhar da moça do lado, esbocei um tímido sorriso; não correspondido, e só então me apercebo que sobre a mesa está um café e uma moeda de um euro. Repentinamente assola-me uma ideia “trinta cêntimos de gratificação por um café?” absurda é certo, pois nem sei se aguarda por demasia, entretanto sinto remorsos, mas é tarde para refazer o já feito, poderia ter deixado sobre a mesa uns “tostões” que em nada a minha vida mudaria e se calhar o empregado até ganha à comissão e bom jeito, ao fim do mês, lhe fariam. Está feito, está feito, registo na memória para nova ocasião, já não vou voltar atrás.   
Com meia dúzia de passos pachorrentos alcanço a bordadura do passeio, paro junto à passadeira, olho para a esquerda, para a direita e novamente para a esquerda, não vislumbro trânsito, atravesso! Já no miolo do largo, à sombra dos jacarandás, volto o pescoço, olho para trás vejo, livre, vago, o lugar que a moça do lado tinha ainda à pouco ocupado, dela nem sombra, contudo o riso estrépito, quase histérico, das turistas troa em todo o largo. Deixo de interessar-me se é que estive realmente interessado, nem sei porque parei e rodei o pescoço na direcção da pizzaria, curiosidade, resposta a um estímulo incontrolado?... Não sei e para ser franco nem estou para aí virado. Torno ao meu caminho e ao fito ali, momentaneamente, embargado. Passo a sombra, o relvado com um pequeno charco incrustado, ladeio o quiosque e a praça do miolo do largo, onde altivo no pedestal o busto de figura insigne descansa e ao mesmo tempo guarda o largo e guarda recordações também, do tempo que o tempo levou; do velho largo apenas ele restou, até o repuxo/bebedouro de pedra mármore rósea a recordação do tempo levou.
Mais uns passos, um grito, um baque súbito suou, encheu o largo, o tempo aqui congelou, parece que o meu movimento de rotação sobre os calcanhares e em torno do meu “bichinho articulado” levou uma eternidade e meia ou o tempo que entremeia o tudo do nada, apesar de na realidade ter sido instantâneo; o tempo tem fracções que nós desconhecemos, perde a sua dimensão em consonância com a relevância do objecto da sua definição – o tempo entre o ser feliz ou infeliz é um elemento tão volátil como fugaz, não se mede sente-se, expressa-se ou converte-se em unidade universal sensorial.
Rodei ou rolei ou ainda mudei a minha posição relativa no tempo; intemporalmente tornei-me condição do ser e não ser, materializando o meu estado fora, distante do acontecimento, todavia tão presente quanto a minha sombra ínfima, projectada nas lajes de pedra calcária, pelos três quartos de hora volvidos ao meio-dia solar. E, assim, imóvel, estupefacto reli o que de facto quebrou o encanto feliz de um pequeno lapso.
Já nada vi que não uma condição humana, retratada a giz na ardósia dura e fria da minha mente, desmembrada, posicionada anatomicamente incorrecta à condição de gente, destroçada e despojada da vida, jazendo em chão esborratado de cinzento.   
No espaço de um relâmpago, trespasso a distância que une ou desune o meu ponto do impasse, pois o tempo parou “freese” ou começou a andar em câmara lenta ”slow moshion”, utilizo anglicanismos de forma a dar força de expressão, à já por si drástica e dramática situação.
Na passadeira, jaz, colhida de surpresa, a moça da mesa do lado, a do café e da moeda de um euro, a que se tinha, por momentos, eclipsado, talvez porque tenha ido retocar a toillete aos sanitários da pizzaria ou aproveitado para se aliviar, que importância afinal terão estes tão solitários e íntimos momentos, que não a relevância da sua ausência a um último e fugaz olhar, um relance, um singular e momentâneo lapso de tempo, nenhuma quero eu pensar alfim, por um táxi vindo sabe Deus de onde – a quietude da tarde não poderia ser maior, tudo nela dormia, tudo nela era acalmia, só um raio seguido de um ribombar, dantesco, de trovão a despertaria – e a uma velocidade vertiginosa, estonteante; entre a velocidade da luz do raio e a do som do trovão, poderia causar tão nefasto acontecimento. No chão, de calçada cinzenta, cálida, deixa a moça derramados, numa enorme poça de sangue, escarlate, todos os seus sonhos, sendo que os mais fugazes já rolam entre as juntas, desordenadas, das pedras, rolam, impulsionados pela força gravítica, em direcção à sarjeta mais próxima, sumidouro de sonhos por realizar ou quiçá, até aqueles que ela nunca ousou sequer sonhar, os outros mais perenes, permaneceram imóveis, serenos aguardaram o frenético ti-nom-nim, ti-nom-nim da sirene do INEM e por contumácia, já sólidos, permaneceram ao pavimento agarrados, como lapa a rocha, muito tempo após a remoção do invólucro, a  casca.
Ajuízo, agora, que esperavam pela chuva e que esta lhes trouxesse o conteúdo de que a alma se repasta. Assim de facto não foi! A mangueira, a agulheta e o jacto de água poderoso e pujante, colheram-nos de surpresa, dando-lhes o caminho que os outros, seus irmãos, antes e por iniciativa própria, tiveram.     

tÓ mAnÉ    Editions 

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