Cai uma folha,
ressequida, de figueira, provocando um baque surdo no chão de pedras, cinza
claro, espelhadas a mica, unidas, parelhas de sienito nefelínico, que soprada
pelo vento mistral, roça-se, lânguida, lambendo lascivamente pedra a pedra, na
sua trajectória entre o ponto de queda e o portão, azul pepsi, onde embate e se retarda, embevecida no sabor de ser
arrastada, por mão, tão álgida mão, para lugar ainda tão incerto. Emmeios,
passivo mas atento ao desenrolar da meada do fio, o Syd, o cão de guarda,
rafeiro alentejano, pardo e branco ou branco e pardo pois de medidas iguais se
fala e o restante é disfarce, e por isso pachorrento, empina uma orelha para
escutar semelhante restolhar e tão
voluptuosa sedução, que de sus sono seu de rompante ousou quebrar, interrompeu,
mas que arrojo este, em plenas barbas minhas, atreve-se a pensar… se porventura
cão pensa em propósitos assim tementes, todavia, abrindo um longo bocejo, logo
se desinteressou, voltando a seus sonhos caninos que só a Deus e ao Syd se
revelarão ou quiçá, só mesmo ao cão.
Terá o rafeiro
associado a folha que cai a uma alma que paira no limbo entre o partir e ficar?
Predicado humano este só? Virtude ou desengano de raça?...
E, o vento cansou
de soprar e quanto à folha, esta descansou sobre uma meia pedra, como
desmaiada, descuidada, saciada e derramada no jogo de cores deste amor, apenas
chamada à razão pela chuva, miudinha, que começou a desprender-se do céu, negro
das nuvens, que o vento trouxe, ciumento, do fragor do amor que tão ternamente
embalou e dele apenas seu testemunho em si grassou, acorda então a folha
estremunhada, sobre a pedra já fria, da chuva que cai, e cai em si gelada,
fora-lhe, naquele instante, a alma, o estar em si e de si, dali sugada.
Num ápice o
portão azul, obedecendo a um impulso eléctrico, começa, num processo lento, a
escancarar suas bandeiras, alargando, como lábios entreabertos, a passagem
entre espaços, até cumprir o seu curso máximo, aí estaca, deixando alas
suspensas, abertas às rodas, negras, que trazem em tempo o antever da fronte, sandré, ornada de ampla vista, de vidro
convexo laminado, com dois olhos vítreos, sem vida, e uma boca escancarada de
dentes horizontais salteados um por um, que impulsionados por um motor a diesel
de 1600 de cilindrada, imponente nos seus 134 CV, inicia uma penetração lenta e
cuidada, escorregando mansamente para uma doce transposição entre os entes,
dissemelhantes, rua e casa, fora e dentro; mundo e lar. Lá fora, negro como
breu, mas liso e sedoso, rege, senhor da sua importância, o asfalto betuminoso,
lá dentro, todavia, as pedras cinzas refulgem no micado da superfície rugosa,
irregular, molhado da chuva que ainda, do céu negro, se abate o quanto se baste
para se ansiar pelo doce e arrebatador chamamento, quase que surdo, quase
perto, do entrave entre o vento, a folha, as pedras e a chuva e o aconchegado e
húmido ventre que dia após dia, desflorado hímen, separa o sacrossanto conforto
do corrupio louco da orbe remanescente.
O Syd,
demonstrando um simulado sem vontade, preguiçosamente, levanta-se, cumprimenta
com vénia curta, abana, em movimento pendular, a sua cauda pendente, contente,
a solidão da guarda acaba, a folha permanece, aparentemente estática, molhada,
gelada, alapou-se ao seu amante e nem vento, nem chuva, nem nada, lhe revertem
a condição de se sentir amada, e assim desfalecida sobre a meia pedra
espalmada, segreda os seus amores à chuva, ao vento e às outras pedras da
calçada, o portão, azul pepsi, por impulsos vive, condenado a um abre
e fecha, alternado, agora fecha por comando, ordem de superior graduado, acata
e cumpre, rígido e altaneiro, em silencio, não fora ele um militar aprumado,
suas duas bandeiras une e assim cessa este ciclo sagrado, ritual de cada dia ao
qual já está, pudera, mais que habituado.
E do vento
mistral, ninguém fala?
E a chuva
miudinha, também chamada nevrinha, o
que é feito dela?
De tão manso em
seu recato, quer o vento quer a chuva, em nada se fazem notar, pois ficaram de parte,
no lado de fora, um sem rumorejar outro sem fortes bátegas derramar, assim, no
calor do íntimo espaço, azafamados, imiscuídos em tarefas multíplices, em
variegados sons imbuídos, e num reboliço desconcertante, quem por eles clamará,
quem deles recordará?...
Seguramente,
ninguém!...
tÓ mAnÉ Editions
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