sexta-feira, 12 de julho de 2013

Hímen



Cai uma folha, ressequida, de figueira, provocando um baque surdo no chão de pedras, cinza claro, espelhadas a mica, unidas, parelhas de sienito nefelínico, que soprada pelo vento mistral, roça-se, lânguida, lambendo lascivamente pedra a pedra, na sua trajectória entre o ponto de queda e o portão, azul pepsi, onde embate e se retarda, embevecida no sabor de ser arrastada, por mão, tão álgida mão, para lugar ainda tão incerto. Emmeios, passivo mas atento ao desenrolar da meada do fio, o Syd, o cão de guarda, rafeiro alentejano, pardo e branco ou branco e pardo pois de medidas iguais se fala e o restante é disfarce, e por isso pachorrento, empina uma orelha para escutar semelhante restolhar e tão voluptuosa sedução, que de sus sono seu de rompante ousou quebrar, interrompeu, mas que arrojo este, em plenas barbas minhas, atreve-se a pensar… se porventura cão pensa em propósitos assim tementes, todavia, abrindo um longo bocejo, logo se desinteressou, voltando a seus sonhos caninos que só a Deus e ao Syd se revelarão ou quiçá, só mesmo ao cão.
Terá o rafeiro associado a folha que cai a uma alma que paira no limbo entre o partir e ficar? Predicado humano este só? Virtude ou desengano de raça?...
E, o vento cansou de soprar e quanto à folha, esta descansou sobre uma meia pedra, como desmaiada, descuidada, saciada e derramada no jogo de cores deste amor, apenas chamada à razão pela chuva, miudinha, que começou a desprender-se do céu, negro das nuvens, que o vento trouxe, ciumento, do fragor do amor que tão ternamente embalou e dele apenas seu testemunho em si grassou, acorda então a folha estremunhada, sobre a pedra já fria, da chuva que cai, e cai em si gelada, fora-lhe, naquele instante, a alma, o estar em si e de si, dali sugada.      
Num ápice o portão azul, obedecendo a um impulso eléctrico, começa, num processo lento, a escancarar suas bandeiras, alargando, como lábios entreabertos, a passagem entre espaços, até cumprir o seu curso máximo, aí estaca, deixando alas suspensas, abertas às rodas, negras, que trazem em tempo o antever da fronte, sandré, ornada de ampla vista, de vidro convexo laminado, com dois olhos vítreos, sem vida, e uma boca escancarada de dentes horizontais salteados um por um, que impulsionados por um motor a diesel de 1600 de cilindrada, imponente nos seus 134 CV, inicia uma penetração lenta e cuidada, escorregando mansamente para uma doce transposição entre os entes, dissemelhantes, rua e casa, fora e dentro; mundo e lar. Lá fora, negro como breu, mas liso e sedoso, rege, senhor da sua importância, o asfalto betuminoso, lá dentro, todavia, as pedras cinzas refulgem no micado da superfície rugosa, irregular, molhado da chuva que ainda, do céu negro, se abate o quanto se baste para se ansiar pelo doce e arrebatador chamamento, quase que surdo, quase perto, do entrave entre o vento, a folha, as pedras e a chuva e o aconchegado e húmido ventre que dia após dia, desflorado hímen, separa o sacrossanto conforto do corrupio louco da orbe remanescente.
O Syd, demonstrando um simulado sem vontade, preguiçosamente, levanta-se, cumprimenta com vénia curta, abana, em movimento pendular, a sua cauda pendente, contente, a solidão da guarda acaba, a folha permanece, aparentemente estática, molhada, gelada, alapou-se ao seu amante e nem vento, nem chuva, nem nada, lhe revertem a condição de se sentir amada, e assim desfalecida sobre a meia pedra espalmada, segreda os seus amores à chuva, ao vento e às outras pedras da calçada, o portão, azul pepsi, por impulsos vive, condenado a um abre e fecha, alternado, agora fecha por comando, ordem de superior graduado, acata e cumpre, rígido e altaneiro, em silencio, não fora ele um militar aprumado, suas duas bandeiras une e assim cessa este ciclo sagrado, ritual de cada dia ao qual já está, pudera, mais que habituado.             
E do vento mistral, ninguém fala?
E a chuva miudinha, também chamada nevrinha, o que é feito dela?
De tão manso em seu recato, quer o vento quer a chuva, em nada se fazem notar, pois ficaram de parte, no lado de fora, um sem rumorejar outro sem fortes bátegas derramar, assim, no calor do íntimo espaço, azafamados, imiscuídos em tarefas multíplices, em variegados sons imbuídos, e num reboliço desconcertante, quem por eles clamará, quem deles recordará?...
Seguramente, ninguém!... 

tÓ mAnÉ   Editions

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