Fiquei feliz pela
morte que Deus deu ao meu pai, foi a morte que ele quis. Todavia o pesar pela
sua ausência ou melhor pela sua falta de presença física, pois ele está e
estará sempre comigo, deixa-me, no meu assoberbado egoísmo, extremamente compungido
ao ponto de me ferir por vezes a racionalidade.
Homem de
princípios e verticalidade exemplar quer na sua honradez e palavra quer nas
suas atitudes do dia a dia para com a família, a sociedade que o rodeava e o
mundo em geral.
Defeitos os teria
com certeza e coisas na sua vida houve, que desconheço da mesma forma que ele
desconhecia da minha, essas porém a ninguém interessava ou interessam, são
daquelas coisas que nem ao Menino Jesus interessavam e que Ele releva e relega
para um plano infinito, o plano do desconhecimento ou talvez do esquecimento por
irrelevantes face ao plano global da cena, apesar de o Diabo viver nos
detalhes, mas Esse não vem aqui a talho de foice.
Como já referi, o
meu pai, morreu como sempre almejou, parece que o oiço ainda dizer que queria
morrer como o pai, o meu avô Manuel Vicente, que morreu sentado, a dormir, no
sofá, costuma-se por ironia ou por piada tola dizer que acordou morto, não foi
o caso do meu pai que morreu vivo, bem vivo, ou melhor deixou de viver para
morrer, algures, no interior do elevador monta-cargas, onde ainda o fôlego lhe
chegou para premir o botão do piso que pretendia aflorar, entre o r/c e o 3º
andar do bloco de apartamentos onde vivia na Rua Ascensão Guimarães.
Nasceu, cresceu e
viveu numa época que lhe servia como um fato feito por medida em alfaiate de
grande gabarito ou quiçá de alta costura, serviu-lhe como uma luva na sua forma
de ser e estar, o mesmo já o não pode dizer relativamente ao momento em que
morreu ou melhor aos conturbados anos que lhe antecederam a morte, os anos do
ante crise e crise declarada.
O meu pai não
renunciou, nem deixou o mundo simplesmente desligou-se, desconectou-se dele e
partiu para outra realidade mais transcendental, mais sensorial, onde acho que poderia
ser livre, livre ao seu jeito.
Assim, posso
asseverar com propriedade: O meu pai não morreu, deixou a vida! E, seguramente,
partiu em paz com ele, com a família e com o mundo.
No dia 13 de
Novembro de 2011 o meu pai levantou-se feliz e sereno como há muito não acontecia
ou não o fazia. Acordou, serenamente, depois de uma noite em que dormiu como
uma pedra; como à muito as suas preocupações não lho permitiam, estas foram as
suas palavras para a minha mãe logo pela manhã. Levantou-se, tarde para o seus
hábitos quotidianos, e como todos os dias tratou das exigências fisiológicas comuns
e da sua higiene pessoal, onde dava especial destaque e atenção, quase como um
ritual diário, ao acto de barbear, no qual era exigente, gostava de um
escanhoado perfeito, sobre o qual aplicava uma loção aftershave, neste caso a Contradiction da Calvin Klein, oferecida por um dos filhos numa das datas de
referência; Natal, aniversário ou no dia do pai, para desinfectar e hidratar a sua
pele já marcada pelos tempos e pelas exigências da vida, de quem criou três
filhos; dois homens e uma mulher, e assegurou uma vida confortável, estável e
muito agradável a uma família a quem ele dedicou, a tempo inteiro, uma vida,
quer aos filhos quer à mulher a quem amava ou melhor venerava. Vestiu-se, tomou
o pequeno-almoço e saiu, sem que antes não tivesse manifestado à minha mãe o
seu contentamento, a sua felicidade por ir almoçar com os filhos, os
disponíveis uma vez que o meu irmão reside em Oeiras, e nos netos a casa da sua
filha em Salir, isto ocorreu por volta das onze da manhã.
O meu pai abdicou
de um futuro brilhante e promissor na política nacional para se dedicar em
exclusivo à família e ao trabalho, que ele entendia como um dos pilares basilares
da estrutura social e política de qualquer nação; células fundamentais da estabilidade
e saúde de um povo. No seu entendimento, quando o ceio da família era saudável,
isto é, haviam princípios morais e sociais e a honradez da palavra tal como a responsabilidade
e a ética no trabalho, eram salvaguardadas de forma religiosa, e a verdade
prevalecia, e era enaltecida, acima de tudo e a mentira era severamente punida,
por um aleijão de carácter, conviver era um prazer, apesar das discordâncias,
dissonâncias, dissemelhanças, e irreverências, que eram cultivadas e encorajadas
como forma de crescimento e angariação de personalidade própria e de um
desenvolvimento salutar de espírito critico, criativo e interventivo, diria
mesmo como uma forma de instigar um pensamento livre de preconceitos e
pré-conceitos, contudo não se confunda esta liberdade de expressão, espírito
aberto e livre arbítrio com licenciosidade pois esta não era tolerada e tinha
punição agravada, severa mesmo.
Havia palavras
fundamentais no seu sentido de família quem eram entre outras: Justiça, responsabilidade,
harmonia, estabilidade, equidade, paridade, imparcialidade, rigor, perseverança,
pontualidade, integridade, verticalidade, honorabilidade, hombridade, entre
muitas outras. Outras porém haviam que não eram toleradas ou eram mal toleradas:
injustiça, cobiça, inveja, desrespeito (o meu pai tinha um conceito peculiar de
desrespeito, que estava aliado ao respeito em si, que era o seguinte: quem não
se respeita a si próprio como poderá respeitar os outros, porquanto nos dizia
sempre - antes de tudo o mais respeita-te), mentira quer premeditada quer por
omissão, era-lhe indiferente a forma, para ele mentira era mentira e um
mentiroso era apanhado mais depressa que um coxo ou, como muitas vezes também o
referia, a mentira tem perna curta, desajustamento horário ou atraso,
boçalidade, agressividade quando gratuita, impetuosidade, indiferença e intolerância de que teor fosse e
vinda de onde fosse, ignominia, maledicência,
iniquidade e impossibilidade. Da licenciosidade já aqui falei sobejamente.
Em minha casa
outros quesitos eram de obrigatoriedade quase impositiva, eram e são eles: Rectidão
e firmeza de atitude, generosidade de carácter, isenção na hora do julgar,
sintonia, simpatia, empatia, entreajuda, respeito, reconhecimento, gratidão, virtuosidade
de intenção, sensibilidade comportamental, opinião válida e construtiva,
vontade e resiliência, sentido de dever, dedicação e ética no trabalho,
honestidade psíquica e física, direitos e salvaguardas, disponibilidade,
atitude de pendente humanitária ou humanidade, dedicação e amor pelo próprio,
pela família e pelos outros.
Poderia aqui
deixar um sem número mais de padrões, marcos, vectores pelos quais me rego e
sob os quais nasci vivi e vivo, no entanto não quero, nem é esse o propósito
destas palavras, aqui devassar a mais ínfima parcela da célula social, que é o
sacrossanto lar que entendo dever resguardar por respeito a mim em primeiro
lugar, depois à minha mãe e aos meus irmãos, de quem mereço e devo o respeito.
Quem venha um dia
a ler estas alegadas bazófias vai pensar que a minha casa, o meu pai e a minha
família, eram um poço sem fundo de virtudes. Não, rotundamente não, não o eram!
Defeitos, discordâncias e desconformidades (e muitas), sim houveram! e ainda as
há, mal se não! No entanto, mais são os motivos que me preenchem o orgulho que
aqueles que me poderiam envergonhar. Tal como em cima deixei explícito poderia
falar deles sem agravo, sem arrependimento, mas prefiro resguardar as portas de
uma vida a franqueá-las, num fartar vilanagem sem precedentes, e de uma forma
que estaria completamente em desconformidade com a politica de vida do meu pai
e da minha família que foi e é o respeito pelo recato e o resguardo; a casa o
que é de casa à rua o que é da rua; vícios privados publicas virtudes.
O culto religioso,
em minha casa, nunca foi uma imposição, todavia desejado, especialmente e essencialmente
pela minha mãe, mais arreigada a estes assuntos de teor litúrgico, mais
incorpóreos e menos materiais. O meu pai, para além de a suportar, apoiar e
acalentar neste campo de cariz espiritual, também muitas vezes a acompanhava às
celebrações a ele alusivas, principalmente nestes seus últimos anos de vida,
mas não só. Se bem que, e no abono da verdade, a frequência da Casa do Senhor,
por parte do meu pai, se tenha tornado mais useira, após a desistência ou o
abandono total das suas actividades lúdicas de fim-de-semana, a caça e a pesca,
fundamentalmente, que quase sempre entravam em conflito temporal com as de
carácter ecuménico.
Todos nós, os
filhos, fomos baptizados e tivemos uma educação cristã (católica apostólica
romana), uns mais outros menos dependendo de singularidades estritamente
pessoais, acabámos por cumprir os desígnios familiares, e fazer a catequese, as
comunhões (a primeira e a solene ou profissão de fé) da praxe, apesar da celebração
do crisma não ter sido, por unanimidade ou por toda a irmandade, comungada.
Estava eu falando
que o meu pai acordou sereno e feliz nesse fatídico dia, quer para ele quer
para todos nós, logo bem com ele e com o mundo e em paz, não que fosse coisa
rara ou pouco frequente, rara sim a intensidade do como; a força do seu sentir.
As últimas
palavras que a minha mãe recorda ouvir dos seus lábios foram: Vou comprar o
jornal e beber um café; ritual diário, tal como o ir às compras, fosse ao
mercado ou ao supermercado, para fazer tempo para que o António, que sou eu,
chegue; era assim, por António, que ele me tratava ou chamava, mas nem sempre
assim foi, quando miúdo até mesmo à pré-adolescência, tratava-me ou chamava-me,
esmerada e carinhosamente, de Tó Mané, que adoptei como nom de plume e que reescrevo sob esta forma um tudo ou nada
peculiar ou mesmo bizarra mas muito intimista; tÓ mAnÉ.
Tínhamos
combinado, telefonicamente, na véspera, o meu pai e eu, que ao meio-dia do dia
seguinte, eu iria buscá-los em frente ao edifício onde habitavam. E assim foi
para mim. Só que não foi bem assim para ele, infelizmente.
Parei, ao
meio-dia, tal como tinha combinado, telefonicamente, no meio da rua, mesmo em
frente ao n.º 48 da Rua Ascensão Guimarães e, desde logo achei estranho a
ausência dos meus pais, o meu pai nunca se atrasava se pecava era por
antecipação de presença, muitas vezes por brincadeira e graça, e para o
acicatar um pouco, costumava dizer-lhe: Porra! Chegas sempre de véspera, ao que
ele me respondia reiteradamente - não gosto de fazer esperar ninguém, é uma
falta de respeito inqualificável, prefiro ser eu a esperar. Face à
invulgaridade do acontecimento pedi à Maria, a minha mulher, para ir tocar à
campainha e apressar os acontecimentos, enquanto eu galgava o passeio, em
deliberada manobra de contravenção, mas permitindo dessa forma uma normal
circulação viária, não gosto de atrapalhar ninguém, tão pouco de estacionar ou
melhor parar desta maneira, porém as circunstâncias assim o exigiam e melhor
que mal é menos mal.
Foi num ai que a
Maria foi e veio e disse-me assim de chofre: vai ver, mas acho que o teu pai
está morto dentro do elevador.
Surpresa,
espanto, choque, incredulidade, negação, renúncia, realidade, facto, vazio profundo,
esperança num engano de julgamento, eu sei lá um sem número de pensamentos
vogaram livres do meu subconsciente ao consciente e voltaram num ápice ao local
de origem, era como um acreditar sem acreditar ou um desacreditar da razão;
morto,… no elevador?!... mas… - Pega no carro, leva a bebé para casa, a tua mãe
que tome conta dela e, tu, volta logo que puderes. Estas foram as palavras que
se me assomaram ao espírito e que padeciam de mais urgência, afinal o meu pai
estava presumivelmente morto, isto é, segundo a Maria a defunção do meu pai era
um facto irrefutável, e apesar (o tempo aqui não contou pois de tão longo de
curtíssimo instante não passou; foi como se um ano de luz se desvanece-se numa
u. a. de tempo) de estar a ceder a cadeira do volante à Maria e a preparar-me
para seguir o caminho que mediava entre a porta entreaberta do automóvel a
porta aberta do elevador, este intervalo de espaço e tempo não existiu, foi
banido da minha memória e da minha consciência, pois apenas tenho a consciência
e a memória do meu pai estendido e prostrado no chão do elevador monta-cargas
com parte das pernas e os pés espalhados no patamar de mármore, frio, do r/c,
cândido, plácido, sereno e em paz, não se denotava na sua face um esgar de
espanto ou uma contorção de dor, parecia que dormia um sono repousado, o sono
dos justos.
Entrei no
monta-cargas. Agachei-me. Agarrei-lhe a mão esquerda, por ausência da direita,
o meu pai era órfão de mão direita desde os seus dezasseis anos, idade em que
lha amputaram, ainda estava quente. Segredei-lhe ao ouvido, como que para
acordá-lo daquele sono eterno, daquele sonho sem fim – pai é o Tó, pai… - mas…
Mas… contra
factos não há argumentos e a intuição da Maria foi fulminantemente assertiva, tal
como a minha percepção da sua intuição, o meu pai tinha acabado mesmo de nos
deixar! Eu sabia-o! Foi como se ele mo tivesse segredado como um último suspiro,
como um último estertor: parti meu filho. Sim era verdade o meu pai terminou,
terminou como termina a pilha de um relógio, algures entre o r/c e o 3º andar do
prédio onde vivia fazia mais de 37 anos, e, brincou, o meu pai era muito
brincalhão, mas à sua maneira, uma maneira muito própria, muito peculiar, com a
vida, que tanto prezava, pela última vez, quando quase matou de susto o vizinho
do 6º andar, aquando este abriu a porta do monta-cargas e se deparou assim de
sus com a aparição. Foi ele que, tartamudeando, tremendo avisou a vizinha do
r/c esquerdo e esta informou a minha mãe, no entanto sobre este assunto
desconheço os pormenores.
Numa zona de
ninguém entre a porta do r/c esquerdo e o átrio, estava a minha mãe, de pé, com
cabeça encostada no braço que apoiava na ombreira da porta, desamparada,
inconsolável, mas ainda alimentando, acalentando, teimosamente, uma esperança,
uma crença que ainda era possível, que morrer não era assim. Fui abraçá-la.
Alimentei-lhe, levemente, a ideia de que sim, de que talvez, mas sem grande
convicção… era contra procedente, era adiar o inevitável, mas quem era eu para
lhe roubar o marido como já tinha roubado a mim mesmo o meu pai?!... E, assim,
me deixei ficar enlaçado por ela, soluçando, enquanto eu engolia a dor imensa
que me roía a alma como um ácido corrói um metal vulgar. Não podia deixar-me ir
pelo cano abaixo, havia um mundo de coisas que eu tinha que fazer… E, no meio
deste pensamento, chega a ambulância do I.N.E.M., foram de uma celeridade
indescritível e dum profissionalismo e duma proficiência sem par - deixo aqui o
meu obrigado e o meu reconhecimento a estes homens e a estas mulheres que
dedicam uma vida a salvar a vida dos outros -, deixei-os com o que restava do
meu pai e saí para dar largas à minha alma que me consumia como nunca.
Aliviei um pouco
o espírito e de seguida telefonei para o meu irmão e disse-lhe, como se impávido
e sereno estivesse: O pai acabou de morrer, vem para baixo. Ainda ouvi um
soluço. Desliguei o telemóvel.
Voltei para
dentro do edifício, para junto do meu pai, para me certificar como decorriam as
operações de reanimação. Enquanto dois elementos corriam contra o cronómetro da
vida ou da morte quiçá? Outro solicitava, telefonicamente, a presença urgente da
equipa de emergência. Contacto feito e sem perda de um instante que fosse, desligou,
e reuniu-se aos outros na dura e penosa tarefa de trazer o meu pai da morte à
vida.
Emmeios a minha
irmã e o meu cunhado chegavam de Salir. Não sei quem os avisou, também não
perguntei, isso era irrelevante, o importante mesmo era que eles estavam ali.
Enquanto o meu cunhado, por mais distante e menos afectado, tratava de alguns
assuntos relevantes e que o momento exigia, a minha irmã tentava, coitada,
equilibrar e compor ou recompor o seu estado de espírito, numa desordem
ordenada, destroçado, estilhaçado, despedaçado, bem como o da minha mãe que
sabe Deus o como que lhe revoluteava.
E, conforme o
tempo ia passando a nossa esperança ia murchando.
Entretanto
acabava de chegar a carrinha de emergência médica do I.N.E.M., eram duas
raparigas novas, uma médica e uma enfermeira, que foram chamadas pela equipa da
ambulância, foram duma rapidez incrível a chegar, devem ter voado de Faro a
Loulé, e incansáveis no trabalho, prolongado, de reanimação do meu pai, feito
com critério e um profissionalismo e uma sensibilidade irrepreensíveis, sem
reparo. Agradecido, muito agradecido, eu estou, pela celeridade de resposta à
chamada e pelos esforços, sem par, envidados.
Há sempre algo
surreal aliado à morte. E a morte do meu pai não foi excepção, senão veja-se: enquanto
o I.N.E.M. estava a tentar reanimar o meu pai o telemóvel da minha irmã tocou,
ela procurou-o, atabalhoadamente, na mala e quando o encontrou olhou para o
visor para se certificar de quem lhe ligava, natural face à situação. Imaginem
os olhos da minha irmã esbugalhados frente ao visor onde se liam três
letrinhas, eram elas ou formavam elas a palavra “pai”, surreal, quase ou mesmo
macabro, alguém durante a operação de socorro deve ter premido o telefone do
meu pai entre o seu corpo e o ao corpo do meu pai e, automaticamente, o
telemóvel accionou a última chamada efectuada; Uma chamada de Deus do outro
mundo para este mundo?! Ou mera coincidência?!... Expliquem isso à minha irmã
que ficou por não ter vida, lívida na sua tez, aterrada no seu âmago.
Há medida que o
tempo se ia escoando eu já pedia a Deus que não conseguissem trazer o meu pai
de volta – que Deus me perdoe da mesma forma que eu me perdoei a mim – mas se
ele voltasse não votava mais o meu pai, mas sim uma massa humana informe, e
isso, ele não queria, pensava como eu, sei-o bem! Várias vezes aborda-mos o
tema e ele sempre me disse que não tinha medo de morrer, tinha, isso sim, medo
de ficar numa cama vegetando ou não, o que seria pior ainda, dependente e
dependendo de tudo e de todos. E Deus, façamos-Lhe, justiça fez-lhe a ele e a
mim a vontade, ou seja, ouviu-nos as preces. Obrigado Deus meu!
Finalmente e após
um longuíssimo, assim me pareceram aqueles três quatros de hora ou mesmo uma
hora, não posso precisar, intervalo de tempo, os trabalhos de reanimação do meu
pai, terminaram.
A médica
aproximou-se de mim, lamentou, porém já nada poderia ser feito, e declarou o
meu pai como morto, o que não constituiu novidade para mim, há muito o intuía
finado, perguntou-me se estava tudo bem comigo e se necessitava de alguma coisa,
respondi-lhe que não mas que talvez a minha mãe e a minha irmã necessitassem.
Com a declaração
da morte, ruiu o castelo de cartas da já ínfima esperança da minha mãe e a
têmpera que lhe assegurara a compostura quebrou-se de sus gerando um momento
tenebroso para todos nós: a queda de nós em nós, e buscando forças entre elementos
do I.N.E.M., vizinhos e família aos poucos fomos compondo o ramalhete que a
palavra morte tinha atirado no chão. Aqui abro uma ressalva de intimidade e
dor, um espaço em branco, um espaço de recato e tenência, um momento intimista,
que para mim não foi longo, nem poderia ser pois tudo se precipitava com uma
velocidade prodigiosa. A médica do I.N.E.M. chamou-me à parte para me
transmitir, quase pedindo desculpa, que, no cumprimento do seu dever e da lei,
tinha que notificar a G.N.R. após a ocorrência do falecimento ao que eu acedi e
o contacto foi efectuado, desconhecendo eu as implicâncias de ordem legal que
adviriam de semelhante decisão, segui, escrupulosamente, o que o rigor da lei obriga.
Apenas com uma pequena ressalva, uma vez que não se pode mexer no corpo, sei-o
agora, pedi ao meu cunhado para retirar os pertences do meu pai, não queria ser
eu a efectuar tão penosa tarefa, para evitar mais situações embaraçosas como um
possível telefonema.
Emmeios a minha
irmã sentou-se no chão do monta-cargas e colocou a cabeça do meu pai no colo,
não queria que ele estivesse com a cabeça no chão e ao mesmo tempo,
acariciando-lhe a face e os cabelos, ia libertando a sua consciência de maus
pensamentos e relembrando os bons, isto digo eu, e evitava de certa forma o
constante deambular da minha mãe, inconformada ainda, entre a casa da vizinha e
o elevador, como que lhe dizendo que o marido estava bem, estava a seu cuidado
e guarda, estava em paz.
A patrulha da G.N.R.,
levou duas eternidades e meia para chegar ao local, vá lá Deus saber porquê que
a mim não me interessa nada, apesar das parcas centenas de metros que medeiam
entre o posto da guarda e o local da ocorrência, obrigando a que duas equipas
do I.N.E.M., constituídas por cinco elementos, permanecessem inutilmente no
local quando, porventura, seriam muito mais necessárias noutro, talvez a salvar
uma vida, quiçá? Mas assim a lei o determina, e lei é lei – dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é a
lei), como muitas vezes ouvi o meu pai referir aludindo à praxe académica
coimbrã.
Por fim chegaram
com o tinom-nim, tinom-nim da sirene a uivar, que a juntar aos rotativos
luminosos das viaturas do I.N.E.M., atraíram um sem número de transeuntes,
aliados a uma curiosidade mórbida, que começaram a fazer do n.º 48 romaria e
local de peregrinação. E o meu pai ali exposto. Uma intolerância avassaladora a
esta falta de respeito começou a nascer e a crescer em mim; retumbando-me na
cabeça um sentimento de nojo. Não podia ser! Tinha que pôr um ponto final à
presença dos abutres, afinal o meu pai em vida viveu em prol da dignidade e do
recato e na sua morte estava sujeito a semelhante devassa. Não! É impensável, intolerável
mesmo. Logo para salvaguardar o respeito para comigo e para com ele eu tinha
que terminar com a exposição a que se encontrava sujeito e repor a dignidade e
o recato que a condição exigia. Chega! Disse para mim. E, acto contínuo, coloquei-me,
feito porteiro sem farda, à porta do edifício, e, sempre que alguém queria penetrar
o espaço, perguntava: é morador, vem visitar alguém, traz algum assunto para
resolver, e consoante a resposta assim franqueava a entrada ou não. E, foi
assim, que a sangria desatada de viandantes exultando excitação mórbida
terminou, apesar de algumas caras de poucos amigos, para as quais eu, naquele
momento, me estava simplesmente a cagar.
Logo que a G.N.R.
entrou em cena o I.N.E.M. deu-lhes conhecimento da ocorrência e fizeram a
tramitação do processo, porque o meu pai era agora um processo, para a jurisdição
competente, recolheram os seus haveres, mais uma vez apresentaram o seu pesar e
partiram com o seu dever mais que cumprido. Um, bem hajam! Para os esforços que
envidaram e o apoio que nos deram.
No elevador, a
minha irmã, estava de pedra e cal, com a cabeça do meu pai no colo,
acariciando-o e falando baixinho com ele, quando de sus alguém fardado lhe
grita: saia daí, saia, ninguém pode mexer no corpo, ninguém pode tocar em nada,
agora para além de um processo o meu pai passou a ser também um crime. A minha
irmã, perplexa, olhava boquiaberta, reflectindo no olhar um ligeiro pânico,
para o graduado, até conseguir exprimir quase num sopro e à laia de desculpa
um: É para não ter a cabeça no chão frio. A resposta veio gutural e imediata: Não
pode estar aí, saia imediatamente.
Conciliador, e
conhecedor da filosofia de vida da minha irmã, sabia que quando ela caísse em
si o caso iria ter um rumo muito diferente, e antevendo-lhe aquele olhar
fulminante associado a uma clarividência, incomum, de espírito, aquando destas
situações, o menor dos males seria a conciliação, antecedendo uma explosão
pragmática e assertiva em franca ascensão, e sendo que o eu mais queria naquele
momento eram mais problemas, porque é claro! resolvi actuar.
Onde se encontra
a falta? No erro ou na omissão?... E, actuando nesta perspectiva, pedi com
jeitinho à minha irmã que largasse mão do meu pai, que o deixasse partir, pois
o que ela segurava era apenas o invólucro a casca, por assim dizer, do meu pai,
o que era importante dele remanescia em nós e ascenderia ao lugar que lhe
estava destinado, não seria nem à direita nem à esquerda do Senhor, lugares
desde sempre reservados, cativos, às outras duas Pessoas da Trindade, mas para
nós andaria lá muito próximo, e lá, no éden perdido, proibido, ele estaria a
velar por nós tal como o fez sempre, enquanto nosso património; porque ele era
nosso, acrescendo ainda as perguntas, ambíguas é bem certo: achas que o pai
quereria que o sentisses assim?... Achas que o pai queria que o recordasses
assim?... E, este foi o argumento, com que consolei a minha mãe, inconsolável, a
minha irmã à beira de um ataque de fúria e a mim, fazendo-me crer, também, que
pior que o meu pai ter falecido era eu não aceitar que ele acima de tudo se
tinha libertado da sua condição humana, de uma vida plena de responsabilidades enquanto
mentor, guia e farol, tendo seguido o seu próprio caminho, não o da liberdade
mas sim o da luz, o de observador avançado, o do espírito que nos regeu, rege e
regerá para todo o sempre, ámen.
Depois de retirar
a minha irmã à missão titânica, de que se incumbiu por iniciativa própria,
dirigi a minha atenção para o desapiedado agente da autoridade, que cumpria a
sua missão, apesar da falta de tacto e excesso de zelo, mas quem pode criticar,
se vêm já assim formatados, afinal não foram prensados para pensar mas sim para
obedecer cegamente, e que estava ali de má vontade a cumprir um dever que lhe
não era grato. Abordei-o com um boa tarde impessoal mas delicado. Pedi
audiência em privado. E,
munindo-me dos argumentos: recato, dignidade e exposição, solicitei-lhe que me
fosse autorizada, por amor de Deus e dos Santos todos, a colocação de uma
almofada sob a cabeça do meu pai e de um lençol a cobrir-lhe a massa corpórea
ali exposta à luz da devassa. Acedeu ao meu pedido. Fica aqui o meu
reconhecimento.
Ainda ventilei a
possibilidade, remota, de levantar o corpo do meu pai para que repousasse no
seu leito, aí porém a lei ergueu-se perante nós, tal e qual o Nilo se ergueu
para o povo de Moisés, só que desta vez eu era o faraó, a barreira era
intransponível: sem certidão de óbito não se pode remover o cadáver e ponto
final.
Ora agora é que
começa o busílis da questão e não só a abstrusidade da lei. Senão vejamos: Dia
13 de Novembro de 2011 foi o dia do Senhor, um Domingo. A certidão de óbito tem
que ser passada pelo Delegado de Saúde, que tem um adicional ao seu salário
base, ajudas de custos por permanência de 24 sobre 24 horas, para fazer face a
ocorrências destas e de outro género, de cerca de € 1000.00, sim leu bem mil euros,
no entanto não estava disponível nem deixou substituto como refere a lei. Todos
os médicos contactados, meus conhecidos, talvez por ser Domingo dia de caça,
não se encontravam contactáveis, excepto um que se encontrava em Espanha a três
horas e picos de caminho que de imediato se mostrou disponível para o incómodo
(nem sabe o quanto lhe estou reconhecido e mesmo até comovido com a atitude).
Declinei a oferta, deixando no entanto em aberto a possibilidade caso não
houvesse outro caminho possível. O rodar das várias listas de contactos médicos
ia-se esgotando, inexoravelmente. A lei é imperativa: As ambulâncias não podem
transportar cadáveres, as agências funerárias não podem transportar os corpos,
a família não pode remover o finado e ali estavam os restos mortais do meu pai
semi-enfiados num elevador monta-cargas, em impasse legal, decorridas que eram
mais de sete horas sobre a descoberta do corpo. Alguém faz uma pálida ideia das
transformações que um corpo sofre com o decorrer das horas, ainda que no final
do Outono? – no dia que o meu pai faleceu não fazia muito frio e sol brilhava
no céu - alguém faz uma pequena ideia do
que é percurso transformacional da face até ao rigor mortis? Coisa horrenda, posso assegurar-vos! Vai da condição
humana à inumana disforme… do ante-mortem
ao post-mortem,
não é
bom de se ver em ninguém mas, é bem pior, quando esse alguém nos toca muito
perto, muito dentro, quando o conhecíamos ao milímetro.
Foi o meu irmão
que vinha de caminho e que eu informei do contra-tempo que de certa forma
conseguiu deslindar o imbróglio, bem hajas mano!
Um par de
telefonemas mais, uma espera para consultas legais mais que legitimas, um par
de papéis assinados, na presença das autoridades, médico, cangalheiros e
familiares, e uma causa de morte por senectude. E, finalmente o corpo do meu
pai repousa no seu leito, não o de morte mas sim o de todos os dias, coberto e
em resguardo, assegurando-lhe uma dignidade em conformidade com a sua postura
na vida. Quero, também, aqui deixar a minha gratidão e reconhecimento ao médico
que tornou, face à sua disponibilidade e coragem, possível esta formalidade.
Allelujah!...
Oito horas e
picos mediaram entre o falecimento e o levantamento do corpo. Uma verdadeira
tormenta, horror dos horrores; em súmula: Lei!
Pouco tempo após
a remoção do corpo o meu irmão e a minha cunhada chegaram, mesmo a hora de se
despedirem, se assim o posso dizer, ou olharem-no pela última vez, já
transfigurado, seráfico e frio, todavia ainda muito ele, mas só para quem o
conheceu.
Poderá parecer
desapiedado da minha parte, mas quem sabe é quem vê, quem conhece e quem sente,
e socorrendo-me e alegando múltiplos factores, sendo que o mais preponderante
foi a crença religiosa arreigada da minha mãe - a minha mãe crê
verdadeiramente, profundamente, tem uma fé genuína, acredita piamente no Livro
Sagrado - e, com base nele e nos seus ensinamentos logrei convence-la que o
marido, isto não é profético, mas sim a verdade das coisas, não iria querer que
ela se agarrasse a uma casca a um invólucro mas sim ao espírito do homem que
ele foi, pelo que a memória do presente deveria ser relegada para o futuro da
memória do passado, ou seja, evitei o beijo da separação, guardando a memória
do passado e matei a visão de uma memória decrépita do presente, ordenei à
funerária a remoção do invólucro hora e meia após a seu levantamento e que as
cerimónias fúnebres ocorressem de féretro fechado; resolução unânime.
Alfim, pude
chorar o meu pai! Recolhi-me. Iluminei duas velas em frente a uma Santa que o
meu pai trouxe do Vale da Telha, lugar que o viu nascer. Ajoelhei. Chorei. Pedi
perdão ao meu pai por umas e por outras, as menos graves, pois as outras
resolveram-se no seu tempo. Pedi, ainda, que ele me ajudasse a estar à altura
na condução da família pois eu iria necessitar. Por fim disse-lhe que poderia partir
em paz e que confiasse em
mim. Chorei mais e mais e quando já cansado e vazio de
lágrimas implorei à Santa que lhe iluminasse o caminho e o ajudasse a encontrar
o seu lugar no mundo da esperança, da paz e da luz.
Após o velório e
a celebração fúnebre o meu pai seguiu para Ferreira do Alentejo onde foi
cremado, conforme vontade expressa. Para Ferreira levei o meu pai e de lá
trouxe uma alma meiga e serena, que vagueava doente e perdida pelo cemitério,
senti que como que encarnava o saber do meu pai e a sua candura de espírito
quando ele deixava que aquele olhar vago e melancólico se apossasse da sua
alma. Assim, juntamente com as cinzas veio aquela a quem chamei de Kika; uma
cadela de pastoreio alentejana.
No limiar dos 86
anos eu disse até sempre ao meu pai. Chorei! Senti-me pequenino outra vez,
desamparado, órfão. No entanto, cabia-me agora a mim ser o homem que ele foi, o
alfa nem sequer mudou de letra de A para A manteve-se o A, mudaram apenas as
condições, as expectativas; o anel mudou de dedo, será que vou estar à altura
que a platina e o brilhante me exigem?...
O nome do meu pai
era, é e há-de sempre ser, para mim e para quem com ele privou: António,
António Monteiro Baptista, e este é um motivo igente de orgulho meu ou melhor
nosso, da minha família.
Post Scriptum: Escrever é um acto de purificação de
alma!?... Uma catarse, uma contrição ou uma maldição!?... Um dia eu tinha que
fazer e escrever isto, e isto é o luto e a minha homenagem póstuma ao meu pai,
para que de uma vez por todas ele e eu descansemos em paz. Como refere Antoine
de Saint-Exupéry in “O Principezinho”:
Só se vê bem com o coração, o essencial é
invisível aos olhos.
tÓ mAnÉ
Editions
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