O meu telemóvel,
no seu visor digital táctil, que por painel de fundo apresenta uma foto, rasca,
tirada por mim, de um quadro a óleo, incompleto ou inacabado ou semi-começado,
pois de óleo apenas uma mão cheia de pinceladas o agraciou, por o ainda não ter
terminado, se que por ainda se possa tomar por um início dos inícios, por falta
de tempo como desculpa, para o esfarrapado, a de facto, por preguiça e falta de
jeito ou habilidade para o mester de pintor, da efígie da minha filha, Laura
Solange de sua graça, mostra no relógio digital e em números garrafais que são
precisamente, claro para o meu relógio digital, 13:32 horas mais ou menos
segundo, o que para o caso se torna irrelevante ou de importância nenhuma,
nula!
Estou sentado.
Voltado para a porta de antecâmara da porta de entrada, vício velho que me foi
transmitido por um amigo que trabalhava na polícia judiciária, em madeira de
castanho envelhecido, maciça, apenas desopactizada na parte superior graças a
um conjunto de seis vidrinhos, fazendo uma quadrícula com as ripas ou as réguas
de madeira que os apartam entre si, janela de vida da antecâmara onde se pode
vislumbrar, antecipadamente, quem entra no espaço principal da sala de
restauração (sim, é verdade estou sentado à mesa duma churrasqueira, pormenor
de escassa relevância? Talvez não!...), onde se encontra acoplada uma mola
hidráulica do tipo “abre-e-fecha” e,
no extremo direito, a meia altura, para que permita uma visão imediata, está
colado, tal como lapa a rocha, um pequeno dístico ou plaqueta metalizada de
alumínio ou outro metal brilhante qualquer, onde se pode ler, gravada a cor
preta e letra maiúscula, a palavra “EMPURRE”,
indicação perfeita para quem queira sair do estabelecimento a convite, por
livre vontade ou arbítrio ou convocado por um compulsivo obrigado e talentosa
simpatia coarctada. No vidrinho, do canto superior direito, encontram-se vários
autocolantes publicitários informando os clientes das instituições de crédito e
débito ali avalizadas ou autorizadas, como quem diz queres consumir então é
assim: ou trazes dinheiro vivo ou ajustas-te às exigências fiduciárias da casa,
caso contrário “EMPURRE”. Sim, pensou
bem o “master-card” figura entre
elas. Curiosamente no vidrinho contíguo, o da direita, se assim o preferirem e
lembrem-se que estou sentado no interior do estabelecimento, está outro
autocolante expressando a vontade de inibir o acesso a cães, paradoxalmente
virado para o interior, terá algum objectivo, algum propósito, ou apenas um fim
específico ou pura distracção? Todavia assim o patenteia e o esboça. Baixando
os olhos, seguindo ainda esta direcção, mesmo abaixinho, mais um autocolante se
escarrapacha num outro vidrinho, desta vez grita-nos à consciência, no seu
vermelho e branco, apelando às almas bem querentes “No Smokers” ou em português
de Portugal “Proibido Fumar”, pleno de porte e altivez no seu sentido de
responsabilidade, forçando ou reforçando ou incutindo a ideia, àqueles que a
não têm, quer a ideia quer a responsabilidade, e que supostamente ou
alegadamente falem o inglês, o que não deixa de ser curioso e caricato
também.
Daqui, deste meu
posto de vigilância, observação e guarda, vislumbro, não só quem entra, não só
quem sai, mas também quem na rua se vai mostrando, seja por necessidade ou pura
vaidade. Posso, ainda, observar o trânsito ou o tráfego, nunca o tráfico, este
anda sub-repticiamente debaixo do nosso nariz, por todo o lado e em lado
nenhum, contudo invisível ou assim queremos que ande; a lateralidade da
percepção involuntária das coisas, que, por caridade, quer a antecâmara quer o
bulício ou o estrídulo infernal da churrasqueira “A Guerreira Tribal”, onde,
como já por demais referido, me encontro sentado, possuído pela infame e bruta
vontade de mitigar a fome que me assola ou almoçar; na verdade e apesar de não
vos ter confessado directamente é hora ou bem mais que hora de almoço, como
quiserem ou como vos aprouver, quero lá eu saber, só e somente me interessa, na
boa da verdade, prosseguir o objectivo primário que me mantém aqui firme e
hirto nesta cadeira, rascunhando furiosamente o meu bloco de comer só, que é o
de encher a pança, me sonega aos meus tenros e sensíveis, quase virginais,
ouvidos; antes assim. Deus te guarde e conserve assim, pungente, nesse teu
dever altivo, antecâmara, amiga dos meus pavilhões auriculares, e firme guardiã
dos ventos e desígnios do mundo exterior.
Quando entrei fui
recebido, na sua tíbida altivez, pela Niara, mulher semi-jovem ou balzaquiana,
negra, como a Virgem Mãe, bonita, vistosa, sensual e provida de atributos
certos nos locais ou sítios exactos; nada destoa, muito bem ou mesmo
excelentemente retocados, colocados e arrumados, obra de Deus por certo; mais
um conjunto de harmonia rara que a natureza de quando em quando gera e nos
presenteia para desfrute ocular na sua eterna benevolência e magnificência. De
beleza singular, duvidosa, dissonante, destoante, desconcertante, profana,
beata, deífica, curiosa, exótica, sumptuosa, voluptuosa, volúvel, felina,
tribal e exultante dos dotes insanos de que a Mãe Natureza está provida e tão
generosamente lhe dotou ou providenciou e dos quais Niara usa e abusa e quão
bem o faz. Devo aqui acrescentar ou abrir um parêntesis para referir ou
esclarecer o que significa o acrónimo Niara: Niara é um nome de origem Swahili que significa "aquela que tem grandes propósitos".
Niara lembra ou
melhor é a reencarnação ou de outra forma mais precisa a materialização
entronizada da negra que pousou, enquanto modelo se é que o houve, para as mãos
que, hábil e delicadamente, fizeram rolar os pincéis dando cor e forma à tela
de dimensão agigantada, pintada a óleo, dependurada na parede da churrasqueira
e da qual é logótipo em capa de menu, sem noção da posição, da estética, do
sentido, da perspectiva ou de critério, à balda, diria, de uma negra tribal
semi-nua; apenas envergando uma tanga de pele de leopardo e arreada com os
artefactos ou adereços inerentes a uma negra de descendência ou condição nobre
ou real, se assim, ousadamente, a possa classificar sem criar pruridos ou ferir
e acentuar melindres e sensibilidades das gentes mais delicadas no sentir ou na
susceptibilidade.
De olhar
profundo, fita-me e ágil, rebola o seu olhar para a mesa em que ora me sento.
Acomodado, serenamente, aguardo, babando, pelas iguarias ofertadas pelo
cardápio e com as quais estou como que a sonhar, apesar do mesmo ainda se
passear nas mãos hábeis de Niara, aguardando o momento ideal, momento que Niara
gere na perfeição, não descurando nenhum preceito ou regra de educação, rica de
intuição e na troca de galhardetes, olha a sala, rola sobre os calcanhares
plena de graciosidade, transfere a carta de uma mão para a outra e investindo
na minha direcção ou rumando a mim, com um ar e um porte que lhe é muito
próprio como também muito peculiar, entre o agressivo e o despeito e o entre o
terno e o melífero; pose mais que estudada, entrega-me, virando-se de imediato
e nas costas deixa para trás, intuitivamente, um sorriso matreiro e perfumado
de intenções, a pasta de imitação de cabedal contendo no seu interior, em letra
manuscrita, o objecto do meu propósito neste local - almoçar; das entradas, ao
peixe, à carne, à fruta e aos doces, dos vinhos às bebidas sem álcool, ali jaz
de tudo – contrariamente ao cemitérios o que ali diferencia os pobres, dos
remediados e dos ricos são os algarismos patenteados na frente do acepipe e não
o fausto da campa ou do jazigo do finado.
Agora haja
engenho e arte na escolha dos predicados dos produtos ali apregoados. Ora vamos
lá à tarefa árdua de criar ou recriar uma refeição que caiba quer no
reservatório de destino quer nos entre folhos de plástico àquilo a que chamo de
carteira e que repousa no meu bolso traseiro direito.
Eu gosto da Niara!
Não só pelo que referi mas também pela proficiência que imprime ao seu mester
de empregada de mesa e ao sentido profissional que lhe confere e transmite, bem
como a ligeireza com que a sua personalidade saltita entre o vagamente brejeiro
e a distância ao abuso evidente, que não tolera, e que trata com elevada
sobranceria, incutindo-lhe um toque de classe e requinte sútil, no entanto, não
deixando margens para dúvidas ou enganos quanto ao seu desagrado ao desagravo
que algum papalvo, incauto, lhe oferte; mulher de brincadeiras mas não de
brincadeira.
Mulher de muitos
predicados e vasta experiência, Niara, sabe aconselhar como ninguém, e gosta de
aconselhar e até de agradar, quer seja costumeiro ou forasteiro, recebe com
prazer, com simpatia comedida é certo, mas sempre de forma impecável e com a
exacta noção do quanto baste. Todavia é no vinho que lhe gabo o dom do saber ou
quiçá dons divinatórios, nunca falha, tal como na simpatia e no atendimento, é
assertiva e aí nada mais resta a dizer, amém e sermão encerrado.
Estou só! Como já
devem ter sobejamente apreendido. Mais uma vez só; deixou de ser situação para
se fazer de hábito, o que de todo não é mau, pois, como se torna por demais
evidente, permite algum devaneio de olho e de expressão, escrita como óbvio
aqui se torna, deixando que na minha mente divaguem e pululem um sem número de
imbecilidades ou não, que instruídas em frases com mais ou menos sentido, vão
preenchendo de sonhos aquilo com que me atrevo ainda a sonhar, o que de facto é
bom para reabilitar a minha sanidade mental e “ginasticar” a bestialidade da
minha imaginação.
Aqui está de novo
Niara, sorrindo (como qualquer bom profissional deveria sempre fazer, na Niara
é inato), vem recolher o pedido e com ele o cardápio. Retribuo o sorriso,
recuso delicadamente o blocoquinho de notas ou encomendas ou pedidos,
chamem-lhe o que quiserem, para o caso reverte em importância zero, e a “Bic Cristal”. Olho Niara nos olhos, e
quase sussurrando ou talvez em tom de um murmúrio suspirado de tão profundo
digo-lhe: Sabes o que me apetece? Niara encolhe imperceptivelmente os ombros e
esboça um sorriso cansado de ser usado mas sempre novo ou renovado e responde:
Sempre o mesmo, não mudas nada, ora diz lá quais são os apetites, mas atenção,
já sabes, se trazes pressa não fujas à carta.
Volto a
enfrentar-lhe os olhos, castanhos-escuros, orlados de um branco marfim, um olho
que olha e sonha em África; na região leste e central de África, talvez;
apesar de eu sempre a pensar como cabo-verdiana, nem sei porque carga de água
benta ou não, e agora que estou pensando no assunto, assola-me a ideia que lhe
desconheço, por falta de comunicação, a origem, o que mais uma vez penso como
irrelevante por nada acrescentar ou retirar a seus atributos e origem foge
subliminarmente a esses padrões de autenticação e ou certificação. Perdido em
divagações, estas e outras, e outra vez em surdina, sopro-lhe os meus desejos:
Fanguingo assado com batatinhas fritas e uma imperial em copo tulipa.
Declino,
delicadamente, as entradas, azeitonas talhadas e manteiga “Reny Picot” em dose individual, não porque não goste mas por a
saúde assim o obrigar, o pão, esse, fica; não sei comer sem pão nem que seja só
para vista.
E assim,
dizendo-lhe isto, e encetando um curto movimento do braço direito que quase lhe
roça, indecentemente, o corpo de tão perto de mim se encontrar, entrego-lhe o
menu, a carta, a ementa ou o cardápio ou o raio a quatro que se lhe possa
chamar, pois tantos os nomes são porque é o bendito instrumento de consulta
gastronómica conhecido.
Niara,
esquadrinha um pequeno esgar e do seu sorriso tímido, entendo que de tanto de
bom fiquei pelo pior. Aproveito este efémero interlúdio para presentear Niara
pela sua franqueza, anichando em sua face de ébano um pequeno e fugaz galanteio
cortês, como refere a cartilha da boa educação e dos bons modos, que,
cumplicemente, é recebido com uma gargalhada fresca, curta, mas surda para a
plateia composta pela outra clientela, exclusiva, um só para ti - assim o
parecia dizer - agarrada a um: achas?...
Dá as costas.
Volta repentina e graciosamente o tronco em torno das generosas ancas, fazendo
delas como que um eixo de rotação vertical, abre, no imediato, um sorriso
franco e amplo, retoma, por fim, o seu caminho baloiçando, meneando e
bamboleando o corpo a cada passo e ao compasso binário da rotação do pé ante pé,
e na fricção ligeira entre chão e sapato; diapasão que afina a banda em compasso
de dança… e assim vai Niara plena dela plena de confiança.
Eis que
majestosa, altiva e gelada, ornada de coroa de espuma e manto dourado, como
saída de lugar nenhum, milagrosamente surge, qual libré, sentada em dossel de
vidro, orvalhado, na bandeja, que apoiada em palma de mão experiente e suave,
sua majestade a “imperial”, apresenta-se. Mas que bem vinda é, para me regar a
pena, o engenho e a arte, que de negra e esbelta mão se desprende, pousa com
carinho e sem aureolar a branca toalha de papel de mácula, por ela incautamente
escorrida, ao longo do longo e oblongo copo de pé meio salto, como se de um
sapato de senhora fina se tratasse ou assim o comparasse…
Ai mas que jeitinho,
que subtileza, que destreza, que mão essa tão firme que do copo nem gota deixa
que bordeje em dengosa e lânguida procissão percorrida a passo lento ao longo
das sinuosas e magistrais curvas da superfície húmida e fria, que da borda ao
pé do copo, que de precioso néctar em seu cálice, prenhe, encerra e, onde se
agitam, em tumulto e revoltas, numa orgia louca, as bolhas de gás, soltam-se,
férteis de vida, que, desorganizadas, desenfreadas, excitadas, em seu desejo
incontido, desmedido e num corre-corre insano, se elevam em expirais ou
aleatoriamente, sem movimento pré-definido, olhos postos no tecto branco da
leve e ondulante manta e aí chegadas, extenuadas, se largam, se libertam, e
estouvadamente rebentam, dando a sua modesta e diminuta contribuição para o
castelo, que do “cagulo”, que ao bordo do copo foge, de brancos sonhos, de um
ar se eleve, erga cresça; assim o seja o teu carácter.
E, entre o enlevo
dos meus devaneios, prudentes é certo, surge de sus o prato principal, o
malogrado pinto ou meio pinto que seja, feito em postas ou antes retalhado em
partes desiguais, dizimadas, esquartejadas, ferozmente, à fraca figura de ave
de aviário depenada e esventrada que bem ainda não nasceu já a vida lhe foi
ceifada, pois a dose ainda que não pródiga na avareza, não deixa de ser curta
na fartura, ao finado assim lhe foi tirada a talha para o ajuste da mortalha e
mais não se poderá exigir à criatura, acompanhado por um punhado de tirinhas
fritas, douradas e estaladiças, de metade de meia batata de calibragem para o
razoável; as celebérrimas batatinhas fritas.
Esfaimado, ataco
o desditoso e indefeso animal, agarro-lhe, ferozmente, uma perna, que de
imediato, faminto, abocanho, emmeio dou uma espreitadela, lasciva, gulosa, às
douradas tiras de batata, agarro duas, levo-as com sofreguidão à caverna dos
apetites, trituro-as de imediato e, impiedosamente, com movimentos, obscenos,
rápidos, de ordem ascensão-descensão de mandíbula inferior, associados a um
leve estremeção de queixada, trinco, trucido, e enlevado com o estalido
harmonioso e seco; música para a harmonia dos meus sabores, quase não oiço o
grito, o vagido, de horror, clamando por clemência, emitido pelos aterrados e
exangues palitos do infeliz tubérculo.
Ataco de novo,
raivosamente, o pinto, objecto da minha inclemente e infame gula, peco mais que
uma, mais que duas e até mais que três vezes, todavia impassível e impenitente,
com uma gota de gordura rebolando pelo queixo, já os dentes, aguçados, rasgaram
quase metade do pequeno peito do animal. Cuspo, entre duas dentadas, um surdo
elogio à cozinheira, pois o pássaro está no ponto, estaladiço em sua pele e
suculento na chicha, peso certo no sal e no piripiri, também por muitos designado
de “o tesanitas”, o produto final do
repasto resulta num desfecho em toque divinal, quase tocam os sinos e as
trompetas dos querubins, serafins e outros seres celestiais como o anjos e os arcanjos.
Agora é o pão que
paga a factura da minha tresloucada avidez. Esborracho-o no molho, à boa e
velha maneira portuguesa, introduzo-o na máquina trituradora para logo de
seguida, sem intervalo que seja, chupar os dois dedos lambuzados de gordura; é
feio, é! não é?... Todavia bom, muito bom! E sempre ouvi dizer, quase em mote
de adágio popular, apesar de o não ser, que tudo o que é bom: faz mal, engorda
ou é imoral, pois a mim pouco se me importa, e, com duas voltas na boca,
rodopiando, quase em passo de dança já lá vai garganta abaixo a caminho da
pança.
Mas se pensam que
foi tudo desde já vos digo que se enganam; a sobremesa, por certo, não foi
banana, não que tenha algo contra esse produto de origem tropical ou outra,
amarelo quando maduro, mas porque sempre me disseram que: banana é bom mas tem
um caroço enorme!... Deixando-me de piadinhas baratas e não vá cair um dentinho
com a gracinha, aliado ao preço dos implantes que estão pela hora da morte,
vamos lá ao que interessa ou não…
Depois de
semelhante orgia de ordem estomacal, estardalhaço e devassidão a mesa ficou,
qual campo de combate, num caos dentro de um caos, reinava a desordem por falta
de trono da ordem, coisa que não passou despercebida aos experimentados olhos
da Niara, que de imediato acorreu para salvar a honra ao "striper", cobrindo-lhe as partes
desnudas, se desta metáfora me posso socorrer. Galhardamente compôs o decomposto
e abrindo a ementa na página certa com assertividade e lestamente, como quem
não quer a coisa, sopra como zéfiro fosse a pergunta: e para sobremesa?...
Passo vagamente
os olhos pela folha indicada, desinteresso-me das letras impressas ou
manuscritas se é que isso agora, para o caso, interessa, recosto-me na cadeira,
olho nos olhos de Niara, que pacientemente aguarda, sorrio e pergunto: abacaxi
há? E sem deixar de a fixar, aguardo por resposta, surda, muda dá-me as costas
e no seu balançado sem um gesto de assentimento ou um ai que seja como
resposta, altiva, quase arrogante, parte, talvez prémio à falta de atenção que
dei à carta. Vai mas volta por certo, todavia certo não fiquei eu pois do
abacaxi só a incógnita me resta. Afinal há ou não há? Será teatro, cinema ou
outro tipo de peça? Talvez revista e Lisboa... Ai Niara a duvida, intrusa, em
mim grassa.
Amarela, apoiada
em fundo brando, vem resplandecente, indecorosamente espessa, a rodela de
abacaxi, farta, gulosa, sumarenta, suculenta na sua aparência, pousa sobre a
mesa exactamente na minha frente. Jocosa, a Niara, olha-me num “como quem pergunta
mas o não diz”: chega-te? vê lá se queres mais? E, airosa, sorrindo me deixa,
assim sem mais nem porquê; parte tal como chega: sorrateiramente. A resposta
morreu-me na garganta e, metendo a viola ao saco, meço de lés a lés a tarefa
que pousada, deliberadamente, ali mesmo à minha frente me desafia e aguarda.
Numa mão o garfo na outra, a contrária a dextra ou destra, porque assim também
se escreve e no léxico vem escarrapachado, a faca, nestes propósitos; armado de
faca e garfo, contemplo, despudorado, por um momento e um só, a fatia amarela,
indecentemente grossa na medida da sua altura, que de despropositada,
desmesurada, até de mim parece fazer zombaria ou chacota, pois avizinha-se e
adivinha-se uma faina dantesca provinda duma brincadeira no mínimo
maquiavélica. Não vou dar a amurada ao mar, nem a ilharga à besta, sobranceiro,
olho, de relance, para a sala, parece que caiu em sepulcral silêncio, parece
que todos me observam ou melhor observam a inopinada rodela amarela que jaz no
seu leito branco, palmo e meio bem medido abaixo do meu nariz. Sinto-me
incomodado sem um porquê evidente, ninguém olha para mim é o que me parece e o
parece é o óbvio, ainda assim, me parece que escrutino nos olhos de Niara um
brilho escarninho que contraria a sua boca que sorri, ampla e franca, perante a
minha perplexidade. Sorrio, rio de mim para mim e penso: onde chega a
obtusidade da condição humana, do parece e não é e do que é e não parece. E,
perdido, inebriado e embrenhado neste mundo de cogitações absurdas, esqueço o
real aquele que de permeio me rodeia e do qual obrigo a mim mesmo,
inusitadamente, a ser o centro das atenções quando na verdade e na realidade o
entorno bem se está a borrifar para mim e pouco ou nada se lhe faz quer eu suba
ou desça, quer viva ou morra, só mesmo talvez o caixeiro viajante das quatro
tábuas ainda se lhe assome um brilhozinho nos olhos, o resto são ventos do
deserto na pradaria.
Espeto o garfo e
a fio de faca traço o risco na fatia, assim como pelo meridiano de Greenwich,
todavia tocando o trópico de Câncer, e assim em duas como que metades mas não
exactas, começo de imediato a delinear, como general atento, a nova estratégia
de dissecar, de sacar a alma ao fruto, que já de si separada pelo gume,
indiferente e impiedoso, da faca que, do e no ensinamento da vida aos poucos,
com mestria, foi afiada. Não deixando transpor um ápice que fosse, logo voltei
a passar a fina lâmina, agora num meridiano qualquer, e assim à parcela mãe em
duas já feita, uma fatia, generosa, usurpei; tive medida no remédio e do
remédio fiz vida, fiz de conta que não conta, a medida nela contida, todavia
cuidei, não fosse a coisa descambar, a medida feita à medida da minha parte incontida,
evitando assim pingar da comissura labial a quantidade não devida. E, neste
desígnio, uma a uma, as partes de ambas as partes que do início parti, foram de
mim fazendo parte da parte que antes não supri. Pouso o talher no prato branco
de amarelo manchado, recosto-me na cadeira e suspiro ou impo ou sei lá o que
seja, pois se ovo não sou, espaço em mim também não sobeja.
Percorro a sala
com os olhos, detenho-me em cada mesa um instante, atrevo-me a fazer um juízo
discreto daquilo que não devo ajuizar, por falso decerto! Na realidade, e fazendo
disso um facto, é por Niara que procuro. E, com o tempo já mais que escasso ou
melhor largamente ultrapassado pelos presentes actos, sonho um café e meio “Jameson” em balão, generoso em tamanho,
de fino vidro, onde se banham, impudicas, duas pedras de cristalino gelo;
alimento para a alma – a alma também se alimenta, quando não, incorre no risco
de, irremediavelmente, definhar e perder toda a sua fabulação, deixa de ser
prolixa.
Alfim consigo
bispar a Niara e granjear a sua atenção através de um meneio discreto de mão.
Niara, assente e, na sua dança sincopada de bailarina de salão, cruza o espaço
que medeia entre ela e mim, baixa ligeiramente a cabeça e sopra-me: Café? Sim
repondo de pronto, acrescentando: mas com companhia, revira os olhos, fingindo
um enfado de morte e mesmo até resignação e, estática, aguarda o necessário
esclarecimento de tão parca e incompleta informação, giro um pouco o pescoço,
tiro-lhe o RX, e, à pergunta muda e implícita que lhe baila nos lábios como um
par de tango bem treinado, respondo: Meio “Jameson”
com duas pedras de gelo em balão grande por favor, responde-me introduzindo um
trejeito de desagrado na face - meio isso é lá alguma coisa ou bem que é ou não
é, meio não chega a nada - e mirando-me revolita sobre si mesma e abanando a
cabeça em gesto de negação ou mesmo reprovação, num fingimento incontido de
zangada, parte em direcção ao balcão sem me dizer mais nada, nem uma só
palavra. Não é falta de profissionalismo nem tão pouco de educação é sim um
acto de pura cumplicidade de uma amizade já de longa duração, onde a
brincadeira é o vector de uma forma indutiva, distraída, desligada e tácita de
convite à descontracção ou à descompressão de uma manhã de azafama.
Café e whisky irlandês postos na mesa e o
relógio tic-tac, tic-tac, tic-tac a fazer-me lembrar que o tempo não pára, que
a tarde não espera e tic-tac, tic-tac, tic-tac… engulo o café de um só trago,
queimo a língua e digo para mim em tom de recriminação: apre, isto é sendo a
tua olha se fosse a do vizinho… atiro de sus os olhos no balão, figuradamente é
bem claro, e num impulso zus, agarro-o e numa tentativa vã de chegar a horas de
sanar o dano, derramo na boca parte do seu dourado, fresco e precioso néctar,
porém já foi mais que extemporâneo, e neste frenesi louco e malvado, nesta luta
insana contra o tempo o tic-tac não pára, volto a enganar o copo, desta vez com
mais brandura, despejo na boca o resto do líquido degluto-o com parcimónia e
agrado, arregaço a manga vejo as horas no meu Swatch comparo-o com o relógio digital, é tarde já ninguém duvida,
chamo a atenção à Niara e com um aceno e um gesto incrusto a ideia da conta que
preciso, pois já corro ou incorro contra o tempo, tic-tac, tic-tac, tic-tac…
Enquanto aguardo
perco o meu espírito pela sala, vejo, mas não oiço, dois indivíduos na
televisão, que falam ou debatem sobre um tema qualquer num talk show que não identifico e que todavia também não me interessa,
pelo aspecto cheira-me a coisas da politica, temas que em tempo me interessaram
mas que actualmente cada vez me passam mais ao lado, muito por culpa, que não
exclusivamente, dos intervenientes das nossas democracias que, desilusão atrás
de desilusão, inverdade atrás de inverdade, nos vão arredando através da descredibilidade
que a seus fatos e gravatas vão transmitindo e que aos poucos e aos muitos se
vai entranhando na nossa desconfiança, traindo-nos e minando-nos a confiança e
com elas o instale do desinteresse; já ninguém acredita, acho até que nem eles
próprios. E, assim, me surpreendo na contemplação de uma tela de motivos
africanos, um casal de leões deitados à sombra de uma acácia contra um céu azul
e um sol de aspecto inclemente, veio-me, assim como à toa, à lembrança a savana
do Serengeti que tantas e repetidas vezes vejo em programas como o National Geografic e afins e de sus
assola-me a ideia, quase um impulso, de que gostaria de visitar África, sentir
o pulsar daquele continente semi-bravio, imponente de uma riqueza ímpar a todos
os níveis, mas onde a fome, a sede e a doença grassam, entre as suas gentes, na
sua mais pura populaça, contudo muitos são aqueles que impunes, e senhores de
riquezas astronómicas, andam a comprar o mundo às peças, e a vender a miséria,
pano de fundo e desculpa, para laboratório e palco de guerra da comunidade
universal disfarçado, camuflado entre as múltiplas cadeias humanitárias que,
menos mal, espalham uma esperança de luz no amanhã do acordar destas gentes; do
Inferno ao Céu, o Diado e Deus criaram, o tubo de ensaio, onde misturam os
ingredientes - suor, sangue, lágrimas, dor, fome, sede, doença, vício, etc… -
que só a Eles e a Eles mesmo só, e a Seu belo alvitre Lhes assanhem, assomem e
assolem as suas invictas consciências; veículo de comando e motorização das
Suas Divinas Vontades, Ámen.
A minha divagação
pela sala não pára aqui, voa agora para a porta de antecâmara, composta por
duas bandeiras oscilantes ou de vai vem, da casa de bando, do tipo western saloon, donde sai, atabalhoada,
uma loura platinada, de saltos inopinadamente altos, titubeante, todavia
petulante em seu porte também, e a cada passo que na dianteira do anterior
coloca, vai, timidamente, ensaiando, entre o ponto de inicio e o ponto de
final, deste sinuoso e curto trajecto, entre mesas e cadeiras, que resulta num
bailado sui generis em passo de dança
atípico e ao ritmo de uma orquestra de vozes, de bater de talheres e pratos, de
arrastar de cadeiras e mesas e de tum-tuns, inimagináveis e diversos, que se
arrastam, inexoravelmente, no ar denso e abafado da sala. Daqui, deste meu
singular posto de observação, embasbacado sigo, a par e passo, estupidamente,
este compasso, afinado a diapasão, do baque-baque a cada passo e de cada salto
troando no chão.
Olha que ainda
apanhas um torcicolo, sibila a Niara nas minhas costas.
- Credo que me
assustaste Niara, queres-me matar do coração?...
- Parece que já
perdeste a pressa? Está aqui a conta.
Dito isto pousa
sobre a mesa, morto sobre o pires de louça, o fatídico papel, esbranquiçado,
pleno de algarismos e letras de um negro azeviche. Lentamente, a minha mão, a
dextra, agarra a borda do pires, ajeito-o ao sabor da minha vista, procuro o que
interessa; Total €15,45 (quinze euros e quarenta e cinco cêntimos), agora sim
dou uma olhadela ao descriminado, confiro, hábito velhinho a mim arreigado.
Arregaço a manga
da camisa e num relance miro os ponteiros do relógio, de espanto esbugalho os
olhos, nem quero acreditar são 14:52 horas, o tic-tac humano desajustou-se
completamente do tic-tac da máquina, aquele estagnou e este voou,
confundiram-se duas dimensões de tempo, imensuráveis nas suas realidades e
relatividades dispares, a humana e a cronológica, aqui, e ao caso, desavindas,
conducentes ao logro, ao meu espanto.
Ergo-me da cadeira,
com um gesto intuitivo ou talvez instintivo, não sei francamente, levo a mão
direita ao bolso traseiro direito, apalpo e retiro, aquilo que chamo de
carteira, escolho duas notas, uma de dez e outra de cinco euros, quase em
simultâneo a mão esquerda rebusca o bolso dianteiro esquerdo, donde por milagre
surgem duas moedas de euro, coloco sobre o prato a quantia, quase exacta, não
aguardo pelo troco, que apesar de parca a gratificação, não o tenho por
costumeiro, contas são contas e devem ser exactas.
Arranco o casaco
das costas da cadeira, arrasto-o a caminho da saída, lanço um breve e
passageiro tchau a Niara, empurro a porta de antecâmara, abraço o sol que
refulge através da porta de saída, embriagando-me e cegando-me, retiro
rapidamente do bolso do casaco os óculos de sol Ray Ban, esmago-os contra o rosto e, a um passo do lado de fora o
casaco vou envergando. Trespasso os espaços, deixo para trás o entorno do almoço
e contrafeito, já na rua ao ar livre, neste dia 277º, da semana 40º, do ano da
graça de 2012, faço o caminho de regresso, soturno, cabisbaixo, sobejamente
atrasado, vitima do deambular do espírito quer no tempo quer no espaço, que fez
erguer, germinar em meu ser, como torre de Babel, um mau feitio descomunal, sem
precedentes, ao local onde passo, quase sempre insatisfeito e contrariado, o
tempo entre as catorze e as dezassete e trinta.
Caminhando,
solitário, embevecido nos meus sentimentos e embebido em pensamentos, ainda que
cedo entrego a minha alma ao sonho e neste hiato perdido a cada passo... já
sonho casa, já sonho lar, já sonho aconchego. E sim, é bem verdade! Sonho
alegria, riso, felicidade, sonho vida, sonho um abraço e um beijo. Sonho com a
minha filha.
tÓ mAnÉ Editions
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