sexta-feira, 12 de julho de 2013

Niara



O meu telemóvel, no seu visor digital táctil, que por painel de fundo apresenta uma foto, rasca, tirada por mim, de um quadro a óleo, incompleto ou inacabado ou semi-começado, pois de óleo apenas uma mão cheia de pinceladas o agraciou, por o ainda não ter terminado, se que por ainda se possa tomar por um início dos inícios, por falta de tempo como desculpa, para o esfarrapado, a de facto, por preguiça e falta de jeito ou habilidade para o mester de pintor, da efígie da minha filha, Laura Solange de sua graça, mostra no relógio digital e em números garrafais que são precisamente, claro para o meu relógio digital, 13:32 horas mais ou menos segundo, o que para o caso se torna irrelevante ou de importância nenhuma, nula!
Estou sentado. Voltado para a porta de antecâmara da porta de entrada, vício velho que me foi transmitido por um amigo que trabalhava na polícia judiciária, em madeira de castanho envelhecido, maciça, apenas desopactizada na parte superior graças a um conjunto de seis vidrinhos, fazendo uma quadrícula com as ripas ou as réguas de madeira que os apartam entre si, janela de vida da antecâmara onde se pode vislumbrar, antecipadamente, quem entra no espaço principal da sala de restauração (sim, é verdade estou sentado à mesa duma churrasqueira, pormenor de escassa relevância? Talvez não!...), onde se encontra acoplada uma mola hidráulica do tipo “abre-e-fecha” e, no extremo direito, a meia altura, para que permita uma visão imediata, está colado, tal como lapa a rocha, um pequeno dístico ou plaqueta metalizada de alumínio ou outro metal brilhante qualquer, onde se pode ler, gravada a cor preta e letra maiúscula, a palavra “EMPURRE”, indicação perfeita para quem queira sair do estabelecimento a convite, por livre vontade ou arbítrio ou convocado por um compulsivo obrigado e talentosa simpatia coarctada. No vidrinho, do canto superior direito, encontram-se vários autocolantes publicitários informando os clientes das instituições de crédito e débito ali avalizadas ou autorizadas, como quem diz queres consumir então é assim: ou trazes dinheiro vivo ou ajustas-te às exigências fiduciárias da casa, caso contrário “EMPURRE”. Sim, pensou bem o “master-card” figura entre elas. Curiosamente no vidrinho contíguo, o da direita, se assim o preferirem e lembrem-se que estou sentado no interior do estabelecimento, está outro autocolante expressando a vontade de inibir o acesso a cães, paradoxalmente virado para o interior, terá algum objectivo, algum propósito, ou apenas um fim específico ou pura distracção? Todavia assim o patenteia e o esboça. Baixando os olhos, seguindo ainda esta direcção, mesmo abaixinho, mais um autocolante se escarrapacha num outro vidrinho, desta vez grita-nos à consciência, no seu vermelho e branco, apelando às almas bem querentes “No Smokers” ou em português de Portugal “Proibido Fumar”, pleno de porte e altivez no seu sentido de responsabilidade, forçando ou reforçando ou incutindo a ideia, àqueles que a não têm, quer a ideia quer a responsabilidade, e que supostamente ou alegadamente falem o inglês, o que não deixa de ser curioso e caricato também.                       
Daqui, deste meu posto de vigilância, observação e guarda, vislumbro, não só quem entra, não só quem sai, mas também quem na rua se vai mostrando, seja por necessidade ou pura vaidade. Posso, ainda, observar o trânsito ou o tráfego, nunca o tráfico, este anda sub-repticiamente debaixo do nosso nariz, por todo o lado e em lado nenhum, contudo invisível ou assim queremos que ande; a lateralidade da percepção involuntária das coisas, que, por caridade, quer a antecâmara quer o bulício ou o estrídulo infernal da churrasqueira “A Guerreira Tribal”, onde, como já por demais referido, me encontro sentado, possuído pela infame e bruta vontade de mitigar a fome que me assola ou almoçar; na verdade e apesar de não vos ter confessado directamente é hora ou bem mais que hora de almoço, como quiserem ou como vos aprouver, quero lá eu saber, só e somente me interessa, na boa da verdade, prosseguir o objectivo primário que me mantém aqui firme e hirto nesta cadeira, rascunhando furiosamente o meu bloco de comer só, que é o de encher a pança, me sonega aos meus tenros e sensíveis, quase virginais, ouvidos; antes assim. Deus te guarde e conserve assim, pungente, nesse teu dever altivo, antecâmara, amiga dos meus pavilhões auriculares, e firme guardiã dos ventos e desígnios do mundo exterior.
Quando entrei fui recebido, na sua tíbida altivez, pela Niara, mulher semi-jovem ou balzaquiana, negra, como a Virgem Mãe, bonita, vistosa, sensual e provida de atributos certos nos locais ou sítios exactos; nada destoa, muito bem ou mesmo excelentemente retocados, colocados e arrumados, obra de Deus por certo; mais um conjunto de harmonia rara que a natureza de quando em quando gera e nos presenteia para desfrute ocular na sua eterna benevolência e magnificência. De beleza singular, duvidosa, dissonante, destoante, desconcertante, profana, beata, deífica, curiosa, exótica, sumptuosa, voluptuosa, volúvel, felina, tribal e exultante dos dotes insanos de que a Mãe Natureza está provida e tão generosamente lhe dotou ou providenciou e dos quais Niara usa e abusa e quão bem o faz. Devo aqui acrescentar ou abrir um parêntesis para referir ou esclarecer o que significa o acrónimo Niara: Niara é um nome de origem Swahili que significa "aquela que tem grandes propósitos".
Niara lembra ou melhor é a reencarnação ou de outra forma mais precisa a materialização entronizada da negra que pousou, enquanto modelo se é que o houve, para as mãos que, hábil e delicadamente, fizeram rolar os pincéis dando cor e forma à tela de dimensão agigantada, pintada a óleo, dependurada na parede da churrasqueira e da qual é logótipo em capa de menu, sem noção da posição, da estética, do sentido, da perspectiva ou de critério, à balda, diria, de uma negra tribal semi-nua; apenas envergando uma tanga de pele de leopardo e arreada com os artefactos ou adereços inerentes a uma negra de descendência ou condição nobre ou real, se assim, ousadamente, a possa classificar sem criar pruridos ou ferir e acentuar melindres e sensibilidades das gentes mais delicadas no sentir ou na susceptibilidade.   
De olhar profundo, fita-me e ágil, rebola o seu olhar para a mesa em que ora me sento. Acomodado, serenamente, aguardo, babando, pelas iguarias ofertadas pelo cardápio e com as quais estou como que a sonhar, apesar do mesmo ainda se passear nas mãos hábeis de Niara, aguardando o momento ideal, momento que Niara gere na perfeição, não descurando nenhum preceito ou regra de educação, rica de intuição e na troca de galhardetes, olha a sala, rola sobre os calcanhares plena de graciosidade, transfere a carta de uma mão para a outra e investindo na minha direcção ou rumando a mim, com um ar e um porte que lhe é muito próprio como também muito peculiar, entre o agressivo e o despeito e o entre o terno e o melífero; pose mais que estudada, entrega-me, virando-se de imediato e nas costas deixa para trás, intuitivamente, um sorriso matreiro e perfumado de intenções, a pasta de imitação de cabedal contendo no seu interior, em letra manuscrita, o objecto do meu propósito neste local - almoçar; das entradas, ao peixe, à carne, à fruta e aos doces, dos vinhos às bebidas sem álcool, ali jaz de tudo – contrariamente ao cemitérios o que ali diferencia os pobres, dos remediados e dos ricos são os algarismos patenteados na frente do acepipe e não o fausto da campa ou do jazigo do finado.
Agora haja engenho e arte na escolha dos predicados dos produtos ali apregoados. Ora vamos lá à tarefa árdua de criar ou recriar uma refeição que caiba quer no reservatório de destino quer nos entre folhos de plástico àquilo a que chamo de carteira e que repousa no meu bolso traseiro direito.  
Eu gosto da Niara! Não só pelo que referi mas também pela proficiência que imprime ao seu mester de empregada de mesa e ao sentido profissional que lhe confere e transmite, bem como a ligeireza com que a sua personalidade saltita entre o vagamente brejeiro e a distância ao abuso evidente, que não tolera, e que trata com elevada sobranceria, incutindo-lhe um toque de classe e requinte sútil, no entanto, não deixando margens para dúvidas ou enganos quanto ao seu desagrado ao desagravo que algum papalvo, incauto, lhe oferte; mulher de brincadeiras mas não de brincadeira.
Mulher de muitos predicados e vasta experiência, Niara, sabe aconselhar como ninguém, e gosta de aconselhar e até de agradar, quer seja costumeiro ou forasteiro, recebe com prazer, com simpatia comedida é certo, mas sempre de forma impecável e com a exacta noção do quanto baste. Todavia é no vinho que lhe gabo o dom do saber ou quiçá dons divinatórios, nunca falha, tal como na simpatia e no atendimento, é assertiva e aí nada mais resta a dizer, amém e sermão encerrado.      
Estou só! Como já devem ter sobejamente apreendido. Mais uma vez só; deixou de ser situação para se fazer de hábito, o que de todo não é mau, pois, como se torna por demais evidente, permite algum devaneio de olho e de expressão, escrita como óbvio aqui se torna, deixando que na minha mente divaguem e pululem um sem número de imbecilidades ou não, que instruídas em frases com mais ou menos sentido, vão preenchendo de sonhos aquilo com que me atrevo ainda a sonhar, o que de facto é bom para reabilitar a minha sanidade mental e “ginasticar” a bestialidade da minha imaginação.
Aqui está de novo Niara, sorrindo (como qualquer bom profissional deveria sempre fazer, na Niara é inato), vem recolher o pedido e com ele o cardápio. Retribuo o sorriso, recuso delicadamente o blocoquinho de notas ou encomendas ou pedidos, chamem-lhe o que quiserem, para o caso reverte em importância zero, e a “Bic Cristal”. Olho Niara nos olhos, e quase sussurrando ou talvez em tom de um murmúrio suspirado de tão profundo digo-lhe: Sabes o que me apetece? Niara encolhe imperceptivelmente os ombros e esboça um sorriso cansado de ser usado mas sempre novo ou renovado e responde: Sempre o mesmo, não mudas nada, ora diz lá quais são os apetites, mas atenção, já sabes, se trazes pressa não fujas à carta.
Volto a enfrentar-lhe os olhos, castanhos-escuros, orlados de um branco marfim, um olho que olha e sonha em África; na região leste e central de  África, talvez; apesar de eu sempre a pensar como cabo-verdiana, nem sei porque carga de água benta ou não, e agora que estou pensando no assunto, assola-me a ideia que lhe desconheço, por falta de comunicação, a origem, o que mais uma vez penso como irrelevante por nada acrescentar ou retirar a seus atributos e origem foge subliminarmente a esses padrões de autenticação e ou certificação. Perdido em divagações, estas e outras, e outra vez em surdina, sopro-lhe os meus desejos: Fanguingo assado com batatinhas fritas e uma imperial em copo tulipa.
Declino, delicadamente, as entradas, azeitonas talhadas e manteiga “Reny Picot” em dose individual, não porque não goste mas por a saúde assim o obrigar, o pão, esse, fica; não sei comer sem pão nem que seja só para vista.               
E assim, dizendo-lhe isto, e encetando um curto movimento do braço direito que quase lhe roça, indecentemente, o corpo de tão perto de mim se encontrar, entrego-lhe o menu, a carta, a ementa ou o cardápio ou o raio a quatro que se lhe possa chamar, pois tantos os nomes são porque é o bendito instrumento de consulta gastronómica conhecido.
Niara, esquadrinha um pequeno esgar e do seu sorriso tímido, entendo que de tanto de bom fiquei pelo pior. Aproveito este efémero interlúdio para presentear Niara pela sua franqueza, anichando em sua face de ébano um pequeno e fugaz galanteio cortês, como refere a cartilha da boa educação e dos bons modos, que, cumplicemente, é recebido com uma gargalhada fresca, curta, mas surda para a plateia composta pela outra clientela, exclusiva, um só para ti - assim o parecia dizer - agarrada a um: achas?...
Dá as costas. Volta repentina e graciosamente o tronco em torno das generosas ancas, fazendo delas como que um eixo de rotação vertical, abre, no imediato, um sorriso franco e amplo, retoma, por fim, o seu caminho baloiçando, meneando e bamboleando o corpo a cada passo e ao compasso binário da rotação do pé ante pé, e na fricção ligeira entre chão e sapato; diapasão que afina a banda em compasso de dança… e assim vai Niara plena dela plena de confiança.
Eis que majestosa, altiva e gelada, ornada de coroa de espuma e manto dourado, como saída de lugar nenhum, milagrosamente surge, qual libré, sentada em dossel de vidro, orvalhado, na bandeja, que apoiada em palma de mão experiente e suave, sua majestade a “imperial”, apresenta-se. Mas que bem vinda é, para me regar a pena, o engenho e a arte, que de negra e esbelta mão se desprende, pousa com carinho e sem aureolar a branca toalha de papel de mácula, por ela incautamente escorrida, ao longo do longo e oblongo copo de pé meio salto, como se de um sapato de senhora fina se tratasse ou assim o comparasse… 
Ai mas que jeitinho, que subtileza, que destreza, que mão essa tão firme que do copo nem gota deixa que bordeje em dengosa e lânguida procissão percorrida a passo lento ao longo das sinuosas e magistrais curvas da superfície húmida e fria, que da borda ao pé do copo, que de precioso néctar em seu cálice, prenhe, encerra e, onde se agitam, em tumulto e revoltas, numa orgia louca, as bolhas de gás, soltam-se, férteis de vida, que, desorganizadas, desenfreadas, excitadas, em seu desejo incontido, desmedido e num corre-corre insano, se elevam em expirais ou aleatoriamente, sem movimento pré-definido, olhos postos no tecto branco da leve e ondulante manta e aí chegadas, extenuadas, se largam, se libertam, e estouvadamente rebentam, dando a sua modesta e diminuta contribuição para o castelo, que do “cagulo”, que ao bordo do copo foge, de brancos sonhos, de um ar se eleve, erga cresça; assim o seja o teu carácter.
E, entre o enlevo dos meus devaneios, prudentes é certo, surge de sus o prato principal, o malogrado pinto ou meio pinto que seja, feito em postas ou antes retalhado em partes desiguais, dizimadas, esquartejadas, ferozmente, à fraca figura de ave de aviário depenada e esventrada que bem ainda não nasceu já a vida lhe foi ceifada, pois a dose ainda que não pródiga na avareza, não deixa de ser curta na fartura, ao finado assim lhe foi tirada a talha para o ajuste da mortalha e mais não se poderá exigir à criatura, acompanhado por um punhado de tirinhas fritas, douradas e estaladiças, de metade de meia batata de calibragem para o razoável; as celebérrimas batatinhas fritas.
Esfaimado, ataco o desditoso e indefeso animal, agarro-lhe, ferozmente, uma perna, que de imediato, faminto, abocanho, emmeio dou uma espreitadela, lasciva, gulosa, às douradas tiras de batata, agarro duas, levo-as com sofreguidão à caverna dos apetites, trituro-as de imediato e, impiedosamente, com movimentos, obscenos, rápidos, de ordem ascensão-descensão de mandíbula inferior, associados a um leve estremeção de queixada, trinco, trucido, e enlevado com o estalido harmonioso e seco; música para a harmonia dos meus sabores, quase não oiço o grito, o vagido, de horror, clamando por clemência, emitido pelos aterrados e exangues palitos do infeliz tubérculo.
Ataco de novo, raivosamente, o pinto, objecto da minha inclemente e infame gula, peco mais que uma, mais que duas e até mais que três vezes, todavia impassível e impenitente, com uma gota de gordura rebolando pelo queixo, já os dentes, aguçados, rasgaram quase metade do pequeno peito do animal. Cuspo, entre duas dentadas, um surdo elogio à cozinheira, pois o pássaro está no ponto, estaladiço em sua pele e suculento na chicha, peso certo no sal e no piripiri, também por muitos designado de “o tesanitas”, o produto final do repasto resulta num desfecho em toque divinal, quase tocam os sinos e as trompetas dos querubins, serafins e outros seres celestiais como o anjos e os arcanjos.
Agora é o pão que paga a factura da minha tresloucada avidez. Esborracho-o no molho, à boa e velha maneira portuguesa, introduzo-o na máquina trituradora para logo de seguida, sem intervalo que seja, chupar os dois dedos lambuzados de gordura; é feio, é! não é?... Todavia bom, muito bom! E sempre ouvi dizer, quase em mote de adágio popular, apesar de o não ser, que tudo o que é bom: faz mal, engorda ou é imoral, pois a mim pouco se me importa, e, com duas voltas na boca, rodopiando, quase em passo de dança já lá vai garganta abaixo a caminho da pança.
Mas se pensam que foi tudo desde já vos digo que se enganam; a sobremesa, por certo, não foi banana, não que tenha algo contra esse produto de origem tropical ou outra, amarelo quando maduro, mas porque sempre me disseram que: banana é bom mas tem um caroço enorme!... Deixando-me de piadinhas baratas e não vá cair um dentinho com a gracinha, aliado ao preço dos implantes que estão pela hora da morte, vamos lá ao que interessa ou não…
Depois de semelhante orgia de ordem estomacal, estardalhaço e devassidão a mesa ficou, qual campo de combate, num caos dentro de um caos, reinava a desordem por falta de trono da ordem, coisa que não passou despercebida aos experimentados olhos da Niara, que de imediato acorreu para salvar a honra ao "striper", cobrindo-lhe as partes desnudas, se desta metáfora me posso socorrer. Galhardamente compôs o decomposto e abrindo a ementa na página certa com assertividade e lestamente, como quem não quer a coisa, sopra como zéfiro fosse a pergunta: e para sobremesa?...
Passo vagamente os olhos pela folha indicada, desinteresso-me das letras impressas ou manuscritas se é que isso agora, para o caso, interessa, recosto-me na cadeira, olho nos olhos de Niara, que pacientemente aguarda, sorrio e pergunto: abacaxi há? E sem deixar de a fixar, aguardo por resposta, surda, muda dá-me as costas e no seu balançado sem um gesto de assentimento ou um ai que seja como resposta, altiva, quase arrogante, parte, talvez prémio à falta de atenção que dei à carta. Vai mas volta por certo, todavia certo não fiquei eu pois do abacaxi só a incógnita me resta. Afinal há ou não há? Será teatro, cinema ou outro tipo de peça? Talvez revista e Lisboa... Ai Niara a duvida, intrusa, em mim grassa.
Amarela, apoiada em fundo brando, vem resplandecente, indecorosamente espessa, a rodela de abacaxi, farta, gulosa, sumarenta, suculenta na sua aparência, pousa sobre a mesa exactamente na minha frente. Jocosa, a Niara, olha-me num “como quem pergunta mas o não diz”: chega-te? vê lá se queres mais? E, airosa, sorrindo me deixa, assim sem mais nem porquê; parte tal como chega: sorrateiramente. A resposta morreu-me na garganta e, metendo a viola ao saco, meço de lés a lés a tarefa que pousada, deliberadamente, ali mesmo à minha frente me desafia e aguarda. Numa mão o garfo na outra, a contrária a dextra ou destra, porque assim também se escreve e no léxico vem escarrapachado, a faca, nestes propósitos; armado de faca e garfo, contemplo, despudorado, por um momento e um só, a fatia amarela, indecentemente grossa na medida da sua altura, que de despropositada, desmesurada, até de mim parece fazer zombaria ou chacota, pois avizinha-se e adivinha-se uma faina dantesca provinda duma brincadeira no mínimo maquiavélica. Não vou dar a amurada ao mar, nem a ilharga à besta, sobranceiro, olho, de relance, para a sala, parece que caiu em sepulcral silêncio, parece que todos me observam ou melhor observam a inopinada rodela amarela que jaz no seu leito branco, palmo e meio bem medido abaixo do meu nariz. Sinto-me incomodado sem um porquê evidente, ninguém olha para mim é o que me parece e o parece é o óbvio, ainda assim, me parece que escrutino nos olhos de Niara um brilho escarninho que contraria a sua boca que sorri, ampla e franca, perante a minha perplexidade. Sorrio, rio de mim para mim e penso: onde chega a obtusidade da condição humana, do parece e não é e do que é e não parece. E, perdido, inebriado e embrenhado neste mundo de cogitações absurdas, esqueço o real aquele que de permeio me rodeia e do qual obrigo a mim mesmo, inusitadamente, a ser o centro das atenções quando na verdade e na realidade o entorno bem se está a borrifar para mim e pouco ou nada se lhe faz quer eu suba ou desça, quer viva ou morra, só mesmo talvez o caixeiro viajante das quatro tábuas ainda se lhe assome um brilhozinho nos olhos, o resto são ventos do deserto na pradaria.
Espeto o garfo e a fio de faca traço o risco na fatia, assim como pelo meridiano de Greenwich, todavia tocando o trópico de Câncer, e assim em duas como que metades mas não exactas, começo de imediato a delinear, como general atento, a nova estratégia de dissecar, de sacar a alma ao fruto, que já de si separada pelo gume, indiferente e impiedoso, da faca que, do e no ensinamento da vida aos poucos, com mestria, foi afiada. Não deixando transpor um ápice que fosse, logo voltei a passar a fina lâmina, agora num meridiano qualquer, e assim à parcela mãe em duas já feita, uma fatia, generosa, usurpei; tive medida no remédio e do remédio fiz vida, fiz de conta que não conta, a medida nela contida, todavia cuidei, não fosse a coisa descambar, a medida feita à medida da minha parte incontida, evitando assim pingar da comissura labial a quantidade não devida. E, neste desígnio, uma a uma, as partes de ambas as partes que do início parti, foram de mim fazendo parte da parte que antes não supri. Pouso o talher no prato branco de amarelo manchado, recosto-me na cadeira e suspiro ou impo ou sei lá o que seja, pois se ovo não sou, espaço em mim também não sobeja.
Percorro a sala com os olhos, detenho-me em cada mesa um instante, atrevo-me a fazer um juízo discreto daquilo que não devo ajuizar, por falso decerto! Na realidade, e fazendo disso um facto, é por Niara que procuro. E, com o tempo já mais que escasso ou melhor largamente ultrapassado pelos presentes actos, sonho um café e meio “Jameson” em balão, generoso em tamanho, de fino vidro, onde se banham, impudicas, duas pedras de cristalino gelo; alimento para a alma – a alma também se alimenta, quando não, incorre no risco de, irremediavelmente, definhar e perder toda a sua fabulação, deixa de ser prolixa.
Alfim consigo bispar a Niara e granjear a sua atenção através de um meneio discreto de mão. Niara, assente e, na sua dança sincopada de bailarina de salão, cruza o espaço que medeia entre ela e mim, baixa ligeiramente a cabeça e sopra-me: Café? Sim repondo de pronto, acrescentando: mas com companhia, revira os olhos, fingindo um enfado de morte e mesmo até resignação e, estática, aguarda o necessário esclarecimento de tão parca e incompleta informação, giro um pouco o pescoço, tiro-lhe o RX, e, à pergunta muda e implícita que lhe baila nos lábios como um par de tango bem treinado, respondo: Meio “Jameson” com duas pedras de gelo em balão grande por favor, responde-me introduzindo um trejeito de desagrado na face - meio isso é lá alguma coisa ou bem que é ou não é, meio não chega a nada - e mirando-me revolita sobre si mesma e abanando a cabeça em gesto de negação ou mesmo reprovação, num fingimento incontido de zangada, parte em direcção ao balcão sem me dizer mais nada, nem uma só palavra. Não é falta de profissionalismo nem tão pouco de educação é sim um acto de pura cumplicidade de uma amizade já de longa duração, onde a brincadeira é o vector de uma forma indutiva, distraída, desligada e tácita de convite à descontracção ou à descompressão de uma manhã de azafama.          
Café e whisky irlandês postos na mesa e o relógio tic-tac, tic-tac, tic-tac a fazer-me lembrar que o tempo não pára, que a tarde não espera e tic-tac, tic-tac, tic-tac… engulo o café de um só trago, queimo a língua e digo para mim em tom de recriminação: apre, isto é sendo a tua olha se fosse a do vizinho… atiro de sus os olhos no balão, figuradamente é bem claro, e num impulso zus, agarro-o e numa tentativa vã de chegar a horas de sanar o dano, derramo na boca parte do seu dourado, fresco e precioso néctar, porém já foi mais que extemporâneo, e neste frenesi louco e malvado, nesta luta insana contra o tempo o tic-tac não pára, volto a enganar o copo, desta vez com mais brandura, despejo na boca o resto do líquido degluto-o com parcimónia e agrado, arregaço a manga vejo as horas no meu Swatch comparo-o com o relógio digital, é tarde já ninguém duvida, chamo a atenção à Niara e com um aceno e um gesto incrusto a ideia da conta que preciso, pois já corro ou incorro contra o tempo, tic-tac, tic-tac, tic-tac…
Enquanto aguardo perco o meu espírito pela sala, vejo, mas não oiço, dois indivíduos na televisão, que falam ou debatem sobre um tema qualquer num talk show que não identifico e que todavia também não me interessa, pelo aspecto cheira-me a coisas da politica, temas que em tempo me interessaram mas que actualmente cada vez me passam mais ao lado, muito por culpa, que não exclusivamente, dos intervenientes das nossas democracias que, desilusão atrás de desilusão, inverdade atrás de inverdade, nos vão arredando através da descredibilidade que a seus fatos e gravatas vão transmitindo e que aos poucos e aos muitos se vai entranhando na nossa desconfiança, traindo-nos e minando-nos a confiança e com elas o instale do desinteresse; já ninguém acredita, acho até que nem eles próprios. E, assim, me surpreendo na contemplação de uma tela de motivos africanos, um casal de leões deitados à sombra de uma acácia contra um céu azul e um sol de aspecto inclemente, veio-me, assim como à toa, à lembrança a savana do Serengeti que tantas e repetidas vezes vejo em programas como o National Geografic e afins e de sus assola-me a ideia, quase um impulso, de que gostaria de visitar África, sentir o pulsar daquele continente semi-bravio, imponente de uma riqueza ímpar a todos os níveis, mas onde a fome, a sede e a doença grassam, entre as suas gentes, na sua mais pura populaça, contudo muitos são aqueles que impunes, e senhores de riquezas astronómicas, andam a comprar o mundo às peças, e a vender a miséria, pano de fundo e desculpa, para laboratório e palco de guerra da comunidade universal disfarçado, camuflado entre as múltiplas cadeias humanitárias que, menos mal, espalham uma esperança de luz no amanhã do acordar destas gentes; do Inferno ao Céu, o Diado e Deus criaram, o tubo de ensaio, onde misturam os ingredientes - suor, sangue, lágrimas, dor, fome, sede, doença, vício, etc… - que só a Eles e a Eles mesmo só, e a Seu belo alvitre Lhes assanhem, assomem e assolem as suas invictas consciências; veículo de comando e motorização das Suas Divinas Vontades, Ámen.
A minha divagação pela sala não pára aqui, voa agora para a porta de antecâmara, composta por duas bandeiras oscilantes ou de vai vem, da casa de bando, do tipo western saloon, donde sai, atabalhoada, uma loura platinada, de saltos inopinadamente altos, titubeante, todavia petulante em seu porte também, e a cada passo que na dianteira do anterior coloca, vai, timidamente, ensaiando, entre o ponto de inicio e o ponto de final, deste sinuoso e curto trajecto, entre mesas e cadeiras, que resulta num bailado sui generis em passo de dança atípico e ao ritmo de uma orquestra de vozes, de bater de talheres e pratos, de arrastar de cadeiras e mesas e de tum-tuns, inimagináveis e diversos, que se arrastam, inexoravelmente, no ar denso e abafado da sala. Daqui, deste meu singular posto de observação, embasbacado sigo, a par e passo, estupidamente, este compasso, afinado a diapasão, do baque-baque a cada passo e de cada salto troando no chão. 
Olha que ainda apanhas um torcicolo, sibila a Niara nas minhas costas.
- Credo que me assustaste Niara, queres-me matar do coração?...
- Parece que já perdeste a pressa? Está aqui a conta.
Dito isto pousa sobre a mesa, morto sobre o pires de louça, o fatídico papel, esbranquiçado, pleno de algarismos e letras de um negro azeviche. Lentamente, a minha mão, a dextra, agarra a borda do pires, ajeito-o ao sabor da minha vista, procuro o que interessa; Total €15,45 (quinze euros e quarenta e cinco cêntimos), agora sim dou uma olhadela ao descriminado, confiro, hábito velhinho a mim arreigado.
Arregaço a manga da camisa e num relance miro os ponteiros do relógio, de espanto esbugalho os olhos, nem quero acreditar são 14:52 horas, o tic-tac humano desajustou-se completamente do tic-tac da máquina, aquele estagnou e este voou, confundiram-se duas dimensões de tempo, imensuráveis nas suas realidades e relatividades dispares, a humana e a cronológica, aqui, e ao caso, desavindas, conducentes ao logro, ao meu espanto.
Ergo-me da cadeira, com um gesto intuitivo ou talvez instintivo, não sei francamente, levo a mão direita ao bolso traseiro direito, apalpo e retiro, aquilo que chamo de carteira, escolho duas notas, uma de dez e outra de cinco euros, quase em simultâneo a mão esquerda rebusca o bolso dianteiro esquerdo, donde por milagre surgem duas moedas de euro, coloco sobre o prato a quantia, quase exacta, não aguardo pelo troco, que apesar de parca a gratificação, não o tenho por costumeiro, contas são contas e devem ser exactas.
Arranco o casaco das costas da cadeira, arrasto-o a caminho da saída, lanço um breve e passageiro tchau a Niara, empurro a porta de antecâmara, abraço o sol que refulge através da porta de saída, embriagando-me e cegando-me, retiro rapidamente do bolso do casaco os óculos de sol Ray Ban, esmago-os contra o rosto e, a um passo do lado de fora o casaco vou envergando. Trespasso os espaços, deixo para trás o entorno do almoço e contrafeito, já na rua ao ar livre, neste dia 277º, da semana 40º, do ano da graça de 2012, faço o caminho de regresso, soturno, cabisbaixo, sobejamente atrasado, vitima do deambular do espírito quer no tempo quer no espaço, que fez erguer, germinar em meu ser, como torre de Babel, um mau feitio descomunal, sem precedentes, ao local onde passo, quase sempre insatisfeito e contrariado, o tempo entre as catorze e as dezassete e trinta.
Caminhando, solitário, embevecido nos meus sentimentos e embebido em pensamentos, ainda que cedo entrego a minha alma ao sonho e neste hiato perdido a cada passo... já sonho casa, já sonho lar, já sonho aconchego. E sim, é bem verdade! Sonho alegria, riso, felicidade, sonho vida, sonho um abraço e um beijo. Sonho com a minha filha.  

tÓ mAnÉ   Editions        

Sem comentários:

Enviar um comentário