sexta-feira, 12 de julho de 2013

Coimbra, 27 de Novembro de 1986



Novembro, 27 de Novembro de 1986.
Estou só, semi-nu e semi-bêbedo
(assim o quis e por vontade expressa)
Sentado, meio de frente, meio de lado
(enviusado é a palavra)
Na parte superior dos degraus da Sé Velha
Envergo, desalinhada, a fiel capa
De feltro e lã tecida
Dela sobressaem, o que da branca camisa resta,
Colarinho, punhos e o negro papillon
Nos pés as peúgas pretas e sobre elas os sapatos.
Cinge-me o corpo a capa 
Que o velho cinto de couro e fivela de lata
Enlaça.
Só, olho o céu e choro
Só, olho os degraus polidos e choro
Só, olho a calçada molhada e reluzente e choro
Só, olho as lâmpadas de sódio e choro
Só, olho-me destroçado e choro
E, só, choro enquanto a penumbra me esconde.
O frio da madrugada tolhe-me a razão
O álcool rodopia-me os sentidos semi-dispersos
Sinto-me vazio, um livro em branco, uma vida por escrever
Este vazio é um vazio indiferente, um alívio, um remorso, uma incerteza
Mas já uma saudade, também.
Um vazio pleno de perguntas sem resposta.
E agora?... Agora que enchi a alma de cifras e letras?...
Agora que nada sei que vou eu fazer?...
Que vou eu fazer de um canudo?...
Através dele nada vislumbro
Que a um futuro se assemelhe
Nada do que aprendi é real
Para que raio serves objecto inútil?...
Pois se a única coisa que sei fazer é estudar…
E, isso, isso?... Acabou!...
Grita-me o alcoolizado cérebro
Desprovido de discernimento e contumaz
Retumba-me, como um trovão no silêncio da tempestade,
Com uma e uma só pergunta:
Que hei-de fazer se nada sei fazer?...
Transido de frio, deserto de vontades
Choro!...
Enquanto, inclemente, a chuva copiosa
Insiste, teimosamente, em lavar o meu pranto
Resgato os restos do meu naufrágio
Engulo, dolorosamente, as lágrimas
Que nos olhos ainda ardem.
E, altivo, desfaço o nó que a garganta aperta
Refaço o pouco do orgulho restante
Cuspo a vergonha nas pedras polidas
Ergo a cabeça, levanto-me
Encho a alma de alento
Aconchego, o melhor que posso,
Ao meu corpo a capa
Ensaio dois passos tímidos
E mais dois ainda pouco convictos
Titubeando para a vida caminho.
A aurora já nasce
Paira uma neblina densa
Sobre o velho casario da alta da cidade
Lusa Atenas acorda cinzenta, fria e chuvosa
Tal como alma minha se sente.  
Cambaleando avanço devagar
Passo ante passo alcanço
A meia distância entre a Sé Velha e o Quebra Costas
Paro! Olho, por cima do ombro,
Contemplo, uma vez mais,
O portal românico do vetusto templo.
Estático, recordo, já saudoso, tristezas e alegrias
Risos felizes, infindáveis promessas,
Jogos de sedução e amores voláteis.
Recordo que muito ri
De onde, agora, a chorar parto.
   
tÓ mAnÉ      Editions

Sem comentários:

Enviar um comentário