Privilegiado!
Lugar este em que me encontro sentado; privilegiado pelo sopro de Deus e
recortado e sonegado ao éden pela mão e engenho do Homem. Este largo, sem forma
geométrica definida, contudo suficientemente grande para conter uma vasta e
importante parcela da vida e da história desta cidade; alegrias e sofrimentos,
esperanças e decepções, vitórias e derrotas, que o gerou ou que ao invés se
gerou no seu entorno, quiçá?... as memórias ancestrais o perpetuaram e o
perpetuarão.
A teia de
arruamentos que a ele confluem ou que dele emanam, não foi urdida pela
subtileza, que só as mais experientes, delicadas e imaginativas, patas de
aranha o poderiam entretecer, numa manhã gélida mas solarenga de janeiro, mas
sim pelas mãos toscas, gretadas e calejadas do Homem; daí advém a sua beleza
tão complexa quanto singela.
Este largo, que
pessoalmente preferia chamar de praça, alberga vida própria, resignando-se
todavia ao sabor, quase amargo e por certo acre, das vontades, do livre
arbítrio e das controvérsias que o Homem ao longo dos tempos lobrigou imaginar
e/ou inventar e tecer; livre e feliz durante o dia e prisioneiro das trevas
iluminadas que, tremeluzindo, lhe colhem e tolhem o sono nas noites quentes de
verão e o embalam e embotam em falsos desideratos e sonhos inefáveis prenhes de
ilusão fátua, mas estes não cabem no âmbito desta história, que talvez e só
talvez, um dia algum outro, à sua maneira, que não eu a venha a contar ou
reinventar, pois a minha pena não é tão longa quanto os sentimentos de tão
sublime, vetusto e insigne lugar ou, por outro lado, a folha desdobrada do
envelope de talheres e guardanapo da
pizzaria onde, neste instante, exerço semelhante privilégio, me permitiria
fazê-lo, ressalvando-se aqui as devidas dúvidas; engenho e arte ou espaço (a
procura da verdade não cabe dentro do copo de imperial que putativamente
trago).
No painel do meu
horizonte; ao fundo, muito ao fundo porque assim confinado o espaço perde a sua
real dimensão, recortados, como a grande boca do tempo, vejo os edifícios e as
ruas bordejantes, os dentes e a falta deles, neste quadro por pintar - a boca
das pobres gentes ou quiçá das gentes pobres.
Daqui vejo de
tudo!
A Igreja, na sua
imponência singela, ocupando quase um quarteirão, branca e de cúpula encimada e
ornada por carrapetão, olho de Deus que espia e expira os pecados do Homem, e a
rapariga da mesa do lado, que seguramente sonha, sonha alguém ou espera que
alguém a note ou dê por ela, ou poderá ainda sonhar que espera por alguém que
ama ou sonhar mesmo que alguém a ame. As sentinas públicas e o empregado de
mesa de turno à esplanada, altaneiro e alcantilado; falcão que observa a presa,
no degrau da porta de entrada, aguardando em calma inquietação, aquele que vai
ser o meu desejo, e o cumprir da sua missão. O Montepio e a sua máquina ATM,
não obrigado! Vai ser mesmo em “cash”,
penso com um laivo de maldade, rasgando-me a mente, assunando-me ao rosto e
ressumando-me nos olhos.
Emmeios, decido:
Vai ser uma pizza “tuna com
cebola e anchovas” e mais 0.20 cl de néctar dourado, se faz favor, pese
embora seja sua obrigação ou empenho inerente à vocação ou mister.
A moça da mesa do
lado desespera e mofina, finge ver, no pulso, as horas que lentas, no
transportar dos minutos, do seu Swatch;
Swiss made, multicolor de verdes e
castanhos mate, por contumácia não correm, finge também, ver as mensagens no
telemóvel Nokia, do qual não
escrutino o modelo nem do mesmo faço questão, será que as espera?... é que a
ausência do tão característico pi-pi-pi revela que, obstinadamente, não
chegaram.
Entretanto, do
outro lado da praça, a antiquada loja de roupa, espera diferente, espera que
lhe pintem ou maquilhem a cara e lhe mudem a tendência revitalizando-lhe o
visual, para poder conquistar o imponente edifício ocre, que a olha indiferente
do outro lado da rua, devoluto, ergue altivo a sua mansarda para a praça,
chorando de suas varandas, abandonadas, lágrimas enferrujadas do tempo,
provindas das saudades que ficaram presas ao peitoril do gradeamento, em ferro
forjado, que as orna.
E justiça não se
faria se não se referisse o talho e a padaria, bem como, a pesarosa, senhora
idosa, que entre portas, abrindo o porta-moedas, espreitando seu valoroso e
magro recheio, vacila entre o pão e a carne e porque não sonhando outros bens
essências que por mingua sobram às posses e faltam à mesa. Mesmo ao lado mora
um café, num edifício de grandiosidade duvidosa, onde uma multidão ruidosa de
sem fazeres, empenha o resto do que lhe falta, numa bica e num medronho,
olhando numa triste contemplação o lago, moderno, vanguardista, e seus jactos
de água desfasados em quer em tempo quer na projecção em altura; o mesmo se
dirá da época.
Contíguos, e de
igual denominação, que o café; tal como já no talho e padaria assim o
acontecera – apelidos de família porventura, convivem em harmonia restaurante e
pastelaria, onde chá de camomila e lombo de porco estufado são quase uma
confraria. Reparo que é para aí que olha a moça, só, inquieta, expectante e,
também, pela sua porta passa, neste momento, de saco alpendorado em sua mão
crispada e rugosa, a senhora idosa cabisbaixa. O sentimento que em ambas grassa,
não pode ser mais diferente mais dissemelhante, isso sei eu ver, isso sei eu dizer,
contudo só elas e Deus revelam e que o sabem e o que pensam e o que as aflige e
tudo o resto são conjecturas e juízos de valor, matizes de pertenças verdades e
falsas conjuras absurdas, de mentes abjectas e de índole puramente
escatológico, desestruturadas do conceito primevo; a procuram da existencial
verdade, una em cada ente, e que apenas a elas lhes assiste, pois que ser
divino o livre arbítrio lhes concedeu.
Quase porta com
porta, no sentido de quem vai, apesar de o conceito ser ambíguo inobstante
irrelevante no contexto do enquadramento que aqui se entende por expresso, ergue-se
desarmónico, dissonante, imprudente, incongruente um edifício novo, fora de
época, alvo, castanho e cinzento, sem história para contar, que não o vende-se
ou arrenda-se ou a hipoteca por pagar ao Montepio ou instituição fiduciária afim…
talvez a das noites insones se revele mais interessante, todavia essa não entra,
não cabe ou não é chamada aqui.
Devo ressalvar
para à verdade não fugir o café de gaveto, ainda no sentido proposto, modesto e
tão mal frequentado quanto o outro, mais limpo, mais composto, divida que tem
para com a empregada de balcão, moça desempenada e bonita, que logo que o
freguês cospe ou joga o papel no chão, recrimina: faz isso em casa seu porco! No
seu “ucrâniês” melodioso, quase
cortês, diria que solto, leve e doce como um beijo. Desarmando de uma penada foi-se,
por parte do incauto que semelhante acto perpetrou, qualquer má intenção ou
intento face a semelhante intrepidez, que de imediato as mãos aos bolsos joga, revista-os
com manifesto nervosismo, ansiedade talvez, retirando deles suas parcas posses
e em jeito de desculpa, olhando em volta, pede mais uma rodada de minis para o
balcão e para a mesa do dominó duas águas, aqueles não bebem álcool, e Helga;
olhando-a nos olhos de olhos doces, meigos de cachorro abandonado e como quem
não quer a coisa, não te esqueças dos tremoços e das alcagoitas. E sim, eu sei,
sei por que já vi, sei porque já assisti!...
E a pizzaria, virada ao miolo central, verde
e arborizado, da praça e dela amputada por via perfuradora e devassa, deixando
antever os dias em que já teve mais fineza, vivacidade, importância, relevância
e graça, deixa também aqui o cunho a esplanada onde, ocioso, me sento e
aguardo, de mesas e cadeiras de alumínio reluzente orlada com sombreiros,
pretos, publicitando, incentivando o consumo de Coca-Cola Zero, cujo letring
desbotado imerge do uso e do desleixo a que foi votado. Aqui, no meio do
bulício do trânsito plantada, testemunho, do miolo, da relva e dos bancos sem
valência nem préstimo por sós, do quiosque, vazio de almas, que vender seu
produto pretende e, que mais parece, a esta hora, nem de borla nem de graça… olha
a pizzaria, soturna e desiludida, a
praça vazia de sonhos e prenhe de saudade do tempo exuberante que a encheu de
força e raça.
Neste instante,
mesmo a meu lado, perfumadas e exuberantes, duas turistas alemãs estão
sentadas, uma usada outra semi, pelos anos que lhes sorriram, bebem duas
imperiais, gargalham, galhofam, e impudica e descuidadamente arregaçam os
calções, descalçam-se, colocam os pés nus na cadeira em frente, mexem os dedos
e afofam-se… chegou o café e com ele rajadas fortes de vento levante, bebo-o! Peço
a conta! Aguardo! e para passar o tempo olho uma vez mais a moça do lado, que
continua inconsoladamente descontente, e já agora, porque não, pelo rabo do
olho espreito as turistas que se derramam entre a mesa e as cadeiras, num dolce far niente e finalizando esta
breve inspecção, abraço com meu olhar as mesas à minha frente; umas livres, sem
gente, onde salta um pardal confiante e indolente, outras ocupadas por famílias
pequenas, aparentemente despreocupadas e com pinta de boa gente, onde a
petizada salta e grita enquanto não chega a encomenda solicitada.
Ainda me sobra
tempo para observar uma prostituta que passa, que afinal não passa, de mais uma
mulher comum, que a vida com ela fez trapaça, embirrou não na proa mas sim na
popa, deixando as amuras, livres, ao sabor das intempéries do vento e das vaga…
das vagas e vãs promessas que a trespassaram e trespassam, cuspindo-a e
largando-a no chão da vida, indiferentes e cegas às desventuras, às desgraças e
ao abandono, inclemente, que na rua se traça.
Chega a conta,
verifico e pago! Aguardo o troço, não deixo gorjeta alguma. Levanto-me! Rebolo
os olhos mais uma vez pela sempre nova e mutante paisagem urbana e digo,
mentalmente, um adeus até à outra ao Largo de São Francisco.
tÓ mAnÉ Editions
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