sexta-feira, 12 de julho de 2013

A praça que é largo



Privilegiado! Lugar este em que me encontro sentado; privilegiado pelo sopro de Deus e recortado e sonegado ao éden pela mão e engenho do Homem. Este largo, sem forma geométrica definida, contudo suficientemente grande para conter uma vasta e importante parcela da vida e da história desta cidade; alegrias e sofrimentos, esperanças e decepções, vitórias e derrotas, que o gerou ou que ao invés se gerou no seu entorno, quiçá?... as memórias ancestrais o perpetuaram e o perpetuarão. 
A teia de arruamentos que a ele confluem ou que dele emanam, não foi urdida pela subtileza, que só as mais experientes, delicadas e imaginativas, patas de aranha o poderiam entretecer, numa manhã gélida mas solarenga de janeiro, mas sim pelas mãos toscas, gretadas e calejadas do Homem; daí advém a sua beleza tão complexa quanto singela.
Este largo, que pessoalmente preferia chamar de praça, alberga vida própria, resignando-se todavia ao sabor, quase amargo e por certo acre, das vontades, do livre arbítrio e das controvérsias que o Homem ao longo dos tempos lobrigou imaginar e/ou inventar e tecer; livre e feliz durante o dia e prisioneiro das trevas iluminadas que, tremeluzindo, lhe colhem e tolhem o sono nas noites quentes de verão e o embalam e embotam em falsos desideratos e sonhos inefáveis prenhes de ilusão fátua, mas estes não cabem no âmbito desta história, que talvez e só talvez, um dia algum outro, à sua maneira, que não eu a venha a contar ou reinventar, pois a minha pena não é tão longa quanto os sentimentos de tão sublime, vetusto e insigne lugar ou, por outro lado, a folha desdobrada do envelope de talheres e guardanapo da pizzaria onde, neste instante, exerço semelhante privilégio, me permitiria fazê-lo, ressalvando-se aqui as devidas dúvidas; engenho e arte ou espaço (a procura da verdade não cabe dentro do copo de imperial que putativamente trago).      
No painel do meu horizonte; ao fundo, muito ao fundo porque assim confinado o espaço perde a sua real dimensão, recortados, como a grande boca do tempo, vejo os edifícios e as ruas bordejantes, os dentes e a falta deles, neste quadro por pintar - a boca das pobres gentes ou quiçá das gentes pobres.
Daqui vejo de tudo!
A Igreja, na sua imponência singela, ocupando quase um quarteirão, branca e de cúpula encimada e ornada por carrapetão, olho de Deus que espia e expira os pecados do Homem, e a rapariga da mesa do lado, que seguramente sonha, sonha alguém ou espera que alguém a note ou dê por ela, ou poderá ainda sonhar que espera por alguém que ama ou sonhar mesmo que alguém a ame. As sentinas públicas e o empregado de mesa de turno à esplanada, altaneiro e alcantilado; falcão que observa a presa, no degrau da porta de entrada, aguardando em calma inquietação, aquele que vai ser o meu desejo, e o cumprir da sua missão. O Montepio e a sua máquina ATM, não obrigado! Vai ser mesmo em “cash”, penso com um laivo de maldade, rasgando-me a mente, assunando-me ao rosto e ressumando-me nos olhos.
Emmeios, decido: Vai ser uma pizzatuna com cebola e anchovas” e mais 0.20 cl de néctar dourado, se faz favor, pese embora seja sua obrigação ou empenho inerente à vocação ou mister.
A moça da mesa do lado desespera e mofina, finge ver, no pulso, as horas que lentas, no transportar dos minutos, do seu Swatch; Swiss made, multicolor de verdes e castanhos mate, por contumácia não correm, finge também, ver as mensagens no telemóvel Nokia, do qual não escrutino o modelo nem do mesmo faço questão, será que as espera?... é que a ausência do tão característico pi-pi-pi revela que, obstinadamente, não chegaram.
Entretanto, do outro lado da praça, a antiquada loja de roupa, espera diferente, espera que lhe pintem ou maquilhem a cara e lhe mudem a tendência revitalizando-lhe o visual, para poder conquistar o imponente edifício ocre, que a olha indiferente do outro lado da rua, devoluto, ergue altivo a sua mansarda para a praça, chorando de suas varandas, abandonadas, lágrimas enferrujadas do tempo, provindas das saudades que ficaram presas ao peitoril do gradeamento, em ferro forjado, que as orna.
E justiça não se faria se não se referisse o talho e a padaria, bem como, a pesarosa, senhora idosa, que entre portas, abrindo o porta-moedas, espreitando seu valoroso e magro recheio, vacila entre o pão e a carne e porque não sonhando outros bens essências que por mingua sobram às posses e faltam à mesa. Mesmo ao lado mora um café, num edifício de grandiosidade duvidosa, onde uma multidão ruidosa de sem fazeres, empenha o resto do que lhe falta, numa bica e num medronho, olhando numa triste contemplação o lago, moderno, vanguardista, e seus jactos de água desfasados em quer em tempo quer na projecção em altura; o mesmo se dirá da época.
Contíguos, e de igual denominação, que o café; tal como já no talho e padaria assim o acontecera – apelidos de família porventura, convivem em harmonia restaurante e pastelaria, onde chá de camomila e lombo de porco estufado são quase uma confraria. Reparo que é para aí que olha a moça, só, inquieta, expectante e, também, pela sua porta passa, neste momento, de saco alpendorado em sua mão crispada e rugosa, a senhora idosa cabisbaixa. O sentimento que em ambas grassa, não pode ser mais diferente mais dissemelhante, isso sei eu ver, isso sei eu dizer, contudo só elas e Deus revelam e que o sabem e o que pensam e o que as aflige e tudo o resto são conjecturas e juízos de valor, matizes de pertenças verdades e falsas conjuras absurdas, de mentes abjectas e de índole puramente escatológico, desestruturadas do conceito primevo; a procuram da existencial verdade, una em cada ente, e que apenas a elas lhes assiste, pois que ser divino o livre arbítrio lhes concedeu.    
Quase porta com porta, no sentido de quem vai, apesar de o conceito ser ambíguo inobstante irrelevante no contexto do enquadramento que aqui se entende por expresso, ergue-se desarmónico, dissonante, imprudente, incongruente um edifício novo, fora de época, alvo, castanho e cinzento, sem história para contar, que não o vende-se ou arrenda-se ou a hipoteca por pagar ao Montepio ou instituição fiduciária afim… talvez a das noites insones se revele mais interessante, todavia essa não entra, não cabe ou não é chamada aqui.
Devo ressalvar para à verdade não fugir o café de gaveto, ainda no sentido proposto, modesto e tão mal frequentado quanto o outro, mais limpo, mais composto, divida que tem para com a empregada de balcão, moça desempenada e bonita, que logo que o freguês cospe ou joga o papel no chão, recrimina: faz isso em casa seu porco! No seu “ucrâniês” melodioso, quase cortês, diria que solto, leve e doce como um beijo. Desarmando de uma penada foi-se, por parte do incauto que semelhante acto perpetrou, qualquer má intenção ou intento face a semelhante intrepidez, que de imediato as mãos aos bolsos joga, revista-os com manifesto nervosismo, ansiedade talvez, retirando deles suas parcas posses e em jeito de desculpa, olhando em volta, pede mais uma rodada de minis para o balcão e para a mesa do dominó duas águas, aqueles não bebem álcool, e Helga; olhando-a nos olhos de olhos doces, meigos de cachorro abandonado e como quem não quer a coisa, não te esqueças dos tremoços e das alcagoitas. E sim, eu sei, sei por que já vi, sei porque já assisti!...     
E a pizzaria, virada ao miolo central, verde e arborizado, da praça e dela amputada por via perfuradora e devassa, deixando antever os dias em que já teve mais fineza, vivacidade, importância, relevância e graça, deixa também aqui o cunho a esplanada onde, ocioso, me sento e aguardo, de mesas e cadeiras de alumínio reluzente orlada com sombreiros, pretos, publicitando, incentivando o consumo de Coca-Cola Zero, cujo letring desbotado imerge do uso e do desleixo a que foi votado. Aqui, no meio do bulício do trânsito plantada, testemunho, do miolo, da relva e dos bancos sem valência nem préstimo por sós, do quiosque, vazio de almas, que vender seu produto pretende e, que mais parece, a esta hora, nem de borla nem de graça… olha a pizzaria, soturna e desiludida, a praça vazia de sonhos e prenhe de saudade do tempo exuberante que a encheu de força e raça.
Neste instante, mesmo a meu lado, perfumadas e exuberantes, duas turistas alemãs estão sentadas, uma usada outra semi, pelos anos que lhes sorriram, bebem duas imperiais, gargalham, galhofam, e impudica e descuidadamente arregaçam os calções, descalçam-se, colocam os pés nus na cadeira em frente, mexem os dedos e afofam-se… chegou o café e com ele rajadas fortes de vento levante, bebo-o! Peço a conta! Aguardo! e para passar o tempo olho uma vez mais a moça do lado, que continua inconsoladamente descontente, e já agora, porque não, pelo rabo do olho espreito as turistas que se derramam entre a mesa e as cadeiras, num dolce far niente e finalizando esta breve inspecção, abraço com meu olhar as mesas à minha frente; umas livres, sem gente, onde salta um pardal confiante e indolente, outras ocupadas por famílias pequenas, aparentemente despreocupadas e com pinta de boa gente, onde a petizada salta e grita enquanto não chega a encomenda solicitada.  
Ainda me sobra tempo para observar uma prostituta que passa, que afinal não passa, de mais uma mulher comum, que a vida com ela fez trapaça, embirrou não na proa mas sim na popa, deixando as amuras, livres, ao sabor das intempéries do vento e das vaga… das vagas e vãs promessas que a trespassaram e trespassam, cuspindo-a e largando-a no chão da vida, indiferentes e cegas às desventuras, às desgraças e ao abandono, inclemente, que na rua se traça.
Chega a conta, verifico e pago! Aguardo o troço, não deixo gorjeta alguma. Levanto-me! Rebolo os olhos mais uma vez pela sempre nova e mutante paisagem urbana e digo, mentalmente, um adeus até à outra ao Largo de São Francisco.

tÓ mAnÉ   Editions

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